Suspensão da participação na UNASUL: reflexos sobre a Segurança e a Defesa regional
Em 2008 foi firmado pelos doze países sul-americanos o Tratado Constitutivo da União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), que transformou a então Comunidade Sul-Americana de Nações, nascida por iniciativa brasileira em 2004, em UNASUL, a fim de desenvolver, de forma consensual, o processo de integração social, econômica, política e cultural, buscando eliminar assimetrias socioeconômicas e fortalecer a democracia, a independência e a soberania dos Estados (UNASUR, 2008). Paralelamente, objetivava-se a constituição de uma organização estritamente sul-americana, desvinculada das influências estadunidenses e voltada aos interesses autônomos da região, proporcionando a construção do diálogo e de uma identidade própria entre seus países membros (SOUZA, 2016).
No dia 20 de abril de 2018, uma semana após a oitava edição da Cúpula das Américas, Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Paraguai e Peru solicitaram suspensão temporária de participação nas atividades da organização. Sua justificativa foi a falta de consenso para a eleição de um secretário geral, cargo vago já há um ano e meio, solicitando resultados concretos para a manutenção do funcionamento das atividades da União, como também revisão do princípio de unanimidade para as decisões. Nota-se uma suposta manobra de pressão (silla vacía) frente aos entraves e problemas que a UNASUL e seus países membros estão passando, nessa atual conjuntura regional de mudanças e dessincronias.
A UNASUL sempre foi alvo de críticas em relação aos poucos avanços concretos realizados em matéria de integração regional. Embora nunca fosse o intuito da organização, os críticos costumam apontar falta de resultados na área econômica e ênfase excessiva no diálogo político que não resulta em medidas específicas, além da aprovação de declarações com poucos efeitos reais. Nesse marco, o Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) foi uma exceção. Geralmente apontado como um dos organismos mais dinâmicos, entre 2009 e 2015 o conselho realizou vinte e cinco reuniões de autoridades dos ministérios de Defesa e sessenta eventos que incluem grupos de trabalho específicos, workshops, seminários e conferências sobre diversas temáticas (VITELLI, 2016). Ademais, criou-se duas instâncias permanentes vinculadas a esse conselho, o Centro de Estudos Estratégicos de Defesa (CEED-CDS) e a Escola Sul-Americana de Defesa (ESUDE).
O surgimento do diálogo, a transparência e a confiança entre as forças armadas da América do Sul certamente antecedem a criação do CDS. Analistas têm apontado, porém, que a UNASUL foi um ator chave na resolução pacífica de conflitos internos e interestatais recentes na região (FERREIRA, 2018), como no conflito entre Colômbia, Equador e Venezuela, em 2008, e em momentos de instabilidade interna na Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela. A inovação particular que nem sempre é apontada, é que, à preexistência de diálogo entre forças armadas o CDS adicionou uma dinâmica e uma institucionalidade de interação entre os ministérios de Defesa, isto é, de uma instância civil e política, não apenas corporativa, no intuito de atingir avanços em matéria de controle civil e a condução política da defesa. Certamente, isto foi um desafio para países, como o Brasil, no qual os ministérios ainda não são controlados efetivamente pelos civis. Desde a crise política brasileira, iniciada com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, nota-se uma intensificação da presença militar, que passa a constituir uma agenda política e estratégica nacional, especialmente com a substituição de Raul Jungmann pelo Gen. Joaquim Silva e Luna no cargo de ministro de Defesa.
O CDS fez esforços em duas dimensões, com resultados diferentes. Por um lado, o organismo se propôs a consolidação de relações pacíficas, de confiança e transparência entre os membros, objetivo que, apesar de desconfianças existentes, conseguiu o consenso de todos os países. Por outro lado, um grupo de membros incentivou a formulação de um conceito estratégico regional sobre a base da preocupação em torno da soberania e da autonomia. Ainda que com nuances, a Venezuela, a Bolívia, o Equador e a Argentina - com o acompanhamento discursivo do ex-ministro brasileiro Celso Amorim - junto à Secretaria Geral da UNASUL, começaram a discutir uma proposta regional de defesa baseada na cooperação para a dissuasão de uma ameaça vinda de potências extrarregionais contra as riquezas naturais sul-americanas. Por diversos motivos, os demais países discordaram desta perspectiva. Este dissenso permite enxergar diferenças ideológicas fundamentais entre os membros, as quais se fortaleceram com mudanças dos governos e culminaram na suspensão voluntária da participação na UNASUL.
Em primeiro lugar, há os países com uma política externa orientada a uma relação privilegiada com os Estados Unidos. Embora não necessariamente o conceito de “cooperação dissuasória” considera a Washington como uma ameaça, ele certamente significa uma dissidência fundamental com a política estadunidense de segurança hemisférica, segundo a qual as forças armadas da região devem apenas se ocupar do crime organizado e da luta contra o terrorismo. Em segundo lugar, o conceito enfrentou a forte oposição de forças armadas que ainda operam sob a lógica da Guerra Fria. Os militares brasileiros, por exemplo, nunca aceitaram a formulação de um conceito estratégico favorecido pelos “países bolivarianos”, da mesma forma que colocaram entraves a outros projetos que tinham participação destes países por considerá-los “ideológicos”.
A mudança da orientação política dos governos também torna-se influente, com o retorno da região ao espectro político de direita, e não mais do alinhamento de ideais de governos progressistas, tendo-se uma alteração no “rumo das políticas domésticas dos países sul-americanos”. O que deixa clara a falta de pragmatismo das políticas exteriores, sem perspectivas de longo prazo e visão regional. O Brasil, ao mesmo tempo que trabalhou arduamente na criação do Conselho de Defesa durante o governo de Lula da Silva, foi um dos países que decidiu suspender-se da UNASUL como um todo. Sua atitude paradoxal mostra o enfraquecimento de seu poder regional, bem como de sua política externa autônoma e de sua visão mediadora e participativa no cenário internacional.
Considerando que não se trata de um abandono definitivo da organização, é difícil elucidar quais são as consequências da suspensão da participação na cooperação em defesa entre os sul-americanos. Tendo em conta o dito aqui, é provável que exista continuidade das iniciativas do CDS que não precisarem de maiores despesas e que contem com a colaboração da ESUDE, organismo muito dinâmico nos últimos dois anos. Já aquelas ações que demandem recursos maiores certamente ficam inviabilizadas com o afastamento dos cinco membros, especialmente por financiarem 80% do orçamento da UNASUL.
Marina Vitelli é doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Rosário (UnR) e pós doutoranda pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP)
Tamires Ap. Ferreira Souza é doutoranda em Relações Internacionais - PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP e PUC-SP). Foi investigadora visitante na Universidad Complutense de Madrid (ICEI) entre os anos 2017 e 2018.
Imagem: Sede da Unasul localizada em Quito, Equador. Por: Montserrat Boix.
Referências:
FERREIRA, Marcos Alan. A crise da UNASUL e seus impactos no seu histórico de promotor da paz regional. 2 de maio de 2018. Rede de Pesquisa em Paz, Conflitos e Estudos Críticos de Segurança. Disponível em <https://redepcecs.com/2018/05/02/a-crise-da-unasul-e-seus-impactos-no-seu-historico-de-promotor-da-paz-regional>.
SOUZA, Tamires A. Ferreira. As razões de existência do Conselho de Defesa Sul-Americano da UNASUL. Revista Carta Internacional, v.11, n.3, p. 124-148, 2016.
UNASUR. Historia. 2008. Disponível em: <http://www.unasursg.org/inicio/organizacion/historia>.
VITELLI, Marina Gisela. Comunidad e Identidad en la Cooperación Regional en Defensa: Entendimientos en Conflicto sobre Pensamiento Estratégico en el Consejo de Defensa Sudamericano. Revista Da Escola de Guerra Naval, 22 (2): 233–60, 2016.
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