A criação de uma Guarda Nacional no México: militarização da segurança pública e autonomia dos milit
No dia 28 de fevereiro de 2019, o congresso mexicano aprovou a lei que deu aval à criação de uma Guarda Nacional, com jurisdição federal. A nova força seria composta por 60.000 efetivos, vindos da Polícia Federal (18.000), Polícia Militar (35.000) e da Polícia Naval (8.000) - sendo que os dois últimos corpos policiais são subordinados, respectivamente, à Secretaria de Defesa Nacional, responsável pelo Exército e pela Força Aérea e à Secretaria da Marinha, que comanda a Marinha do México. Por sua vez, a Guarda Nacional está sob controle da Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, órgão criado em 2018 pelo novo governo e que é responsável por tarefas de segurança pública, ao invés da Secretaria de Defesa Nacional.
A lei aprovada também definiu os objetivos e a estrutura da Guarda Nacional. O objetivo central definido para essa força foi a investigação e combate a delitos cometidos em localidades sob jurisdição do governo federal. Essa força pode ser considerada uma instituição "híbrida", uma vez que, apesar de estar subordinada a uma secretaria civil, seus integrantes são em sua maioria militares e sua estrutura é análoga à do Exército. Além disso, o Comandante escolhido pelo presidente foi um militar da ativa, com patente de general.
O projeto de criação de uma Guarda Nacional foi idealizada pelo presidente eleito do México em 2018, Andrés Manuel López Obrador (cujo partido é o MORENA) e foi incorporado no seu Plano Nacional de Paz e Segurança 2018-2024. Essa medida constituía uma de suas principais apostas para a reformulação do combate ao crime organizado, sobretudo ao narcotráfico. Segundo aquele documento, a criação de uma Guarda Nacional seria uma alternativa à utilização das Forças Armadas em tarefas de segurança pública - medida criticada por López Obrador quando ainda era candidato. No dia 30 de junho de 2019, foi anunciada a entrada em funcionamento da Guarda Nacional. Efetivamente, a nova força é composta por 70.000 integrantes, empregados nas 150 regiões mais violentas do país e com o objetivo de chegar a 82.000 integrantes até o final do ano e a 150.000 até 2023. A nova força também foi designada para substituir a Polícia Federal (devido aos seus altos índices de corrupção e de ineficiência).
A criação de um corpo intermediário de segurança gerou novos insumos a dois debates de grande importância no México: a militarização da segurança pública e as relações civis-militares. No que tange ao primeiro tema, as Forças Armadas mexicanas possuem um papel histórico no provimento da segurança interna e no combate ao narcotráfico. Entretanto, esse fato começou a intensificar-se a partir sobretudo dos anos 2000, com o fortalecimento dos cartéis mexicanos. Porém, foi a partir de 2006, no governo de Felipe Calderón (2006-2012) que houve uma escalada ainda maior do emprego de militares na segurança interna do país, com o presidente tendo declarado oficialmente guerra às drogas e empregado mais de 45.000 militares no combate ao narcotráfico. Dessa maneira, nas décadas de 2000 e de 2010 o número de militares empregados em missões antinarcóticos cresceu de 30.991 em 2000 para em torno de 52.000 em 2018.
Apesar de algumas mudanças no governo Peña Nieto, os militares permaneceram nas ruas, fazendo com que uma medida declarada como temporária em 2006 se estendesse por 13 anos. Apesar disso, os resultados apresentados têm sido bastante insatisfatórios. Entre 2006 e 2018 houve 225.790 homicídios; número de homicídios em 2017 foi o mais alto desde 1997 e atualmente existem mais de 27.000 pessoas desaparecidas.
No referente a questão das relações civis-militares, as Forças Armadas no país desfrutam, historicamente, de uma autonomia. Essa autonomia consolidou-se durante o regime do Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao longo da maior parte do século XX e continuou mesmo após o fim da hegemonia do partido em 2000, com a vitória do presidente Vicente Fox. Desse modo, não houve uma reforma institucional nas Forças Armadas que as subordinassem plenamente ao setor civil como ocorreu em outros países da América Latina. A estrutura de comando dos militares permaneceu intacta, com estes estando subordinados à Secretaria de Defesa Nacional (no caso do Exército e da Força Aérea) e à Secretaria da Marinha, duas instituições independentes, subordinadas apenas à Presidência da República. Traço indicador dessa autonomia ainda existente, o setor militar tem se agrupado enquanto estamento a fim de influenciar decisões políticas, como foi o caso da forte influência dos militares na aprovação da Lei de Segurança Interior pelo Congresso em 2017, que concedia maiores poderes para as Forças Armadas desenharem e implementarem políticas de segurança. Entretanto, essa lei foi anulada pela Suprema Corte de Justiça porque muitos pontos contidos nela eram incompatíveis com a Constituição do país.
Assim, no que se refere à primeira questão, embora a criação de uma força intermediária seja utilizada por países que buscaram estabelecer algum grau de diferença entre segurança interna e defesa, como Argentina (Gendarmería) e Chile (Carabineros), a incorporação de militares como mais da metade de seu contingente não permite deixar de falar sobre militarização de segurança pública e de desvio de funções por parte dos militares. Apesar do novo treinamento que receberão enquanto membros da Guarda Nacional, é sabido que os objetivos, as doutrinas e o treinamento das instituições militares diferenciam-se bastante daqueles encontrados em forças de segurança civis. Além disso, a utilização de militares em uma força intermediária e "híbrida", com estrutura análoga às das Forças Armadas e comandadas por um general do Exército demonstram que, ao invés de ser uma iniciativa para desmilitarização do combate a delitos e a organizações criminosas, a criação da Guarda Nacional parece consolidar a institucionalização do uso de militares em funções policiais.
Cabe destacar que as forças militares de um país são treinadas com o objetivo de neutralizar qualquer agente que ameace subverter a ordem normativa interna daquela sociedade - o "inimigo". No entanto, no caso do crime organizado e de outras atividades ilícitas, não se trata de uma subversão da ordem interna, mas de agentes que auferem ganhos à margem dela - nesse caso, são considerados "delinquentes". A criação de um corpo de segurança que conta com a presença de militares que possuem doutrinas e estratégias próprias (ainda que submetidos a um novo tipo de treinamento - mas por um tempo relativamente curto) e treinados para liquidar "o inimigo" não faz com que o problema da militarização da segurança pública seja superado. E isso ocorre justamente porque não há uma compatibilização entre dois tipos de forças coercitivas (militares e policiais), visto que elas próprias possuem razões de ser diferentes.
Assim, o que se tem visto no caso de alguns países latino-americanos, como a Colômbia, é a transformação das Forças Armadas, mediante renovação doutrinária e reestruturação organizacional para permitir uma melhor participação em tarefas de segurança pública. Também há a possibilidade de realizar uma reestruturação dos corpos policiais para uma atuação mais intensa no combate a grupos criminosos, que contam com armamentos pesados e grande capacidade de organização. No entanto, no caso mexicano, a criação da Guarda Nacional não resolve nem um problema nem o outro.
Apesar dessas críticas à criação do novo corpo armado, esta representa uma mudança significativa e uma busca por tentar solucionar a desprofissionalização das Forças Armadas, que passaram por um processo de reestruturação organizacional durante o governo de Calderón para melhor adequar-se ao combate ao crime organizado. Dessa maneira, pode-se dizer que há uma "suavização" do problema do emprego dos militares em atividades de segurança pública, dado que as Forças Armadas enquanto instituições não continuarão a ter esse papel no longo prazo, mas apenas uma parcela das forças.
No que se refere às relações civis-militares, a criação da Guarda Nacional parece perpetuar uma situação histórica de autonomia das instituições militares no processo decisório. A nomeação de um militar, ainda que subordinado à Secretaria de Segurança e Proteção Cidadã, permite ver que o setor militar ainda possui grande capacidade de influência nos processos de tomada de decisão na área de segurança. Aliado a isso, a falta de perspectivas de uma reforma na estrutura das Forças Armadas, a fim de subordiná-las ao poder civil, bem como a falta de modificações no sistema doutrinário ou nos tipos de missões delegados às Forças Armadas corrobora a percepção de que, ao invés de uma mudança radical na política de segurança mexicana, a criação de uma Guarda Nacional apenas reforçará o mesmo tipo de interação entre Forças Armadas e poder civil. Além disso, é importante mencionar que a continuação da presença de militares em tarefas de segurança pública - ainda que em um corpo de segurança diferente das Forças Armadas - perpetua o seu prestígio ante o governo que tem sido usado desde a década de 1990 e reforçado a partir dos governos Fox e Calderón para garantir a sua autonomia.
João Estevam dos Santos é mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, bolsista CAPES e pesquisador do Gedes.
Imagem: Desfile Comemorativo da Independência mexicana. Por: Presidencia de la República Mexicana.