A Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo e a presença do Brasil
Em 2010, com base no capítulo VII da Carta da ONU, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) decidiu prolongar a Missão das Nações Unidas no Congo (MONUC), que passou a se chamar Missão de Estabilização das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO). Essa missão destaca-se, especialmente, pela proteção de civis e defesa dos Direitos Humanos, assim como pela estabilização e consolidação da paz no país. Posteriormente, devido à permanência dos conflitos, o CSNU deu continuidade à missão e as resoluções sucessoras trouxeram novos enfoques, tais como verificar e prevenir a questão do estupro pelas milícias e o aumento do contingente militar no país.
Assim, uma das funções da MONUSCO foi atender a população civil congolesa contra as milícias, sobretudo na região leste do país, pois as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) vinham se mostrando incapazes de desmantelar os grupos rebeldes que atuam nas regiões mais vulneráveis. Considerando a complexidade para a resolução dos conflitos na República Democrática do Congo (RDC), o CSNU decidiu aplicar a quinta técnica de resolução de conflitos, chamada “Imposição da Paz” (Peace-enforcement), buscando manter a estabilidade no país.
De modo geral, apesar da persistência dos conflitos, os resultados da MONUSCO desde a sua implementação são considerados positivos. Vale citar, por exemplo, a criação da Rede de Alerta da Comunidade da MONUSCO para a proteção de civis, onde a segurança do Estado e a MONUSCO conseguiram resolver 85% de alertas de ameaças, além da patrulha militar para proteção dos civis e detenção de forças negativas. Ainda, foram realizadas 93 campanhas e 34 capacitações aos atores da sociedade civil a fim de mitigar riscos em eleições.
Na questão de gênero, em 2018, mais de 80% dos escritórios da missão trabalharam em ações específicas para maior participação da mulher congolesa na sociedade. No âmbito infantil, mais de 1000 crianças foram separadas de grupos armados. Ademais, sobressaem-se as atividades de Organizações Internacionais Não Governamentais presentes no país, como a Cruz Vermelha Internacional e os Médicos Sem Fronteiras, que atuam em áreas assoladas pela epidemia do Ébola, levando auxílio e garantindo a proteção dos civis nas regiões que são foco principal da missão. Porém, os desafios continuam sobretudo no que concerne ao fortalecimento das instituições estatais de segurança, tendo em vista que os grupos rebeldes continuam atuando, ocasionando mortes e obrigando o deslocamento da população local.
Desse modo, a presença de soldados especialistas em guerra na selva foi solicitada, pois boa parte dos grupos rebeldes se refugiam nas florestas. Tal empreitada foi encarregada ao Brasil por ser a principal referência na área em nível internacional por meio do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS). Assim, a missão conta com 13 soldados brasileiros especializados em guerra na selva para se juntarem à Brigada de Intervenção – composta por batalhões da África do Sul, Tanzânia e Malui – que já atuam no combate aos grupos armados. Os soldados brasileiros se encontram no país desde junho de 2019 para treinar a Brigada, assim como a FARDC.
Vale destacar que a presença do Brasil na MONUSCO data desde o mandato do General Santos Cruz que esteve na frente de comando durante os anos 2013-2014, sendo reconhecido por ajudar a desmantelar o grupo rebelde M23 em março de 2013. Atualmente, o General Elias Filho, também brasileiro, está à frente da missão, com vasta experiência em Operações de Manutenção de Paz, administrativa e operacionalmente. Ainda, o general tem atuado em atividades de formação com representantes de outras missões de paz da ONU no continente africano, compartilhando experiências seja em termos de baixa de tropas, segurança individual e coleta, planejamento, neutralização de grupos armados, dentre outros.
Ademais, o Brasil possui uma longa participação em Operações de Manutenção de Paz da ONU, o que lhe dá credibilidade nesta atividade, tanto do ponto de vista da atuação diplomática na resolução dos conflitos, quanto na disponibilidade de soldados para o campo de ação. O país também apoia iniciativas de caráter administrativo, como foi o caso do fornecimento de materiais de escritórios, com o objetivo de auxiliar no equipamento de unidades locais que lutam contra violência e abusos sexuais, assim como buscam promover a proteção de crianças.
Destaca-se ainda o âmbito educacional recreativo, como o projeto “Capoeira para a paz” (Capoeira for Peace), implementado em 2014 com intuito de treinar ex-crianças-soldado como forma de reintegração social. O projeto é resultado da integração entre a Embaixada do Brasil e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e têm como desafios a reintegração das mais de 3 mil crianças que ainda se encontram associadas a grupos armados, sobretudo nas regiões do Kivu e Katanga, no leste do país. No entanto, apesar da complexidade ainda apresentada pela missão e os problemas internos do país em garantir a segurança e estabilidade em nível nacional, reconhece-se que os esforços do aparato militar e administrativo têm sidos disponibilizados, sobretudo financeiramente.
O apelo pela técnica de “imposição da paz”, mediante o uso da força pelos soldados da missão, deve ser analisado cuidadosamente considerando o processo de construção do Estado como um todo, principalmente no setor de segurança que ainda depende de ajuda externa para manter o clima de estabilidade. Embora pouco executadas, as atividades de peace enforcement na MONUSCO têm auxiliado em grande medida a execução das atividades estratégico-militares, impulsionando o processo de construção do Estado no setor de segurança.
Apesar de as operações de peace enforcement terem seu caráter jurídico na Carta da ONU, sua aplicação é recomendada em situações de ameaças à paz e à ajuda humanitária, na proteção e defesa da missão no país. Porém, vale destacar que as experiências observadas na década de 1990, como o genocídio de Ruanda, mostraram resultados insuficientes e frágeis no processo de consolidação e estabilização paz.
Na RDC, o uso da força focou na neutralização de grupos rebeldes em conjunto com as Forças Armadas da República Democrática do Congo (FARDC) e a Brigada da Intervenção, visando a proteção dos civis. Assim, contou ainda com auxílio tecnológico do uso de drones para eliminar as ameaças de grupos rebeldes escondidos nas florestas. É neste cenário que a presença de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva contribui, por meio de treinamento, no combate a estes grupos foragidos.
Interpreta-se que, a aplicação da imposição da paz na RDC tem objetivo estratégico militar para desmantelar grupos rebeldes em ação. Porém, o processo de construção e consolidação da paz vai além, passando pela análise de como ocorreram as negociações de paz pós-conflitos entre as partes envolvidas. Ou seja, passa por uma discussão do processo de construção do Estado considerando a necessidade de estabelecimento de instituições estatais competentes capazes de congregar os interesses dos atores locais com base nas origens dos conflitos.
Logo, um programa de atividade de reforma do setor de segurança eficiente serve de política de encaminhamento para a consolidação da paz mediante aplicação de programas como Desmobilização, Desarmamento e Reintegração (DDR) de ex-combatentes, bem como interação dos atores locais e internacionais para implementação prática dessas atividades. Nesse sentido, é mister recordar a atuação brasileira no processo de construção do Estado timorense, diplomaticamente, com destaque para a figura de Sérgio Vieira de Mello nesse processo de negociação no Timor Leste.
Contudo, os desafios da MONUSCO continuam, especialmente aqueles voltados para ações militares e estratégicas de combate aos grupos rebeldes que têm causado instabilidades no país e impedido a ação das intervenções de ajuda humanitária. Assim, reafirmando os objetivos da missão de proteger os civis, estabilizar o país e apoiar a implementação de paz, a missão conta atualmente com 1,3 mil agentes policiais e 4 mil civis atuando no terreno, além de 16 mil militares sob comando do general brasileiro Elias Filho.
As políticas para a consolidação da paz não abrangem o território nacional, a atuação dos atores internacionais ainda é restrita e o exército nacional ainda atua de modo delimitado na proteção da sociedade civil. Dessa forma, a presença brasileira tem sido percebida principalmente no papel desempenhado pelos comandantes especialistas em missões de paz, e, recentemente, pela chegada de soldados brasileiros especialistas em guerra na selva para o treinamento da Brigada de Intervenção a fim de enfrentarem os grupos rebeldes.
Contudo, a MONUSCO vem mostrando resultados satisfatórios e a presença brasileira tem sido relevante aos olhos da comunidade internacional, seja na sua liderança em campo, como em questões táticas e estratégicas por meio de troca de experiência com os soldados recém-chegados ao país, de grande relevância no combate aos grupos rebeldes. Apesar dos desafios internos no estabelecimento de instituições no setor de segurança, é possível notar certo clima de confiança e esperança da sociedade congolesa no trabalho da missão e dos governos locais.
Laurindo Tchinhama é doutorando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).