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A queda do presidente sudanês, reverberações locais e o jogo geopolítico



No último mês de abril, Omar al-Bashir, presidente do Sudão desde 1989, foi deposto e preso pelas forças armadas sudanesas. O grupo militar, que agora comanda o país, estabeleceu um conselho de transição, de dois anos, argumentando maior solidez e estabilidade no processo de transformação a um governo de cunho civil, algo que seria inédito desde a independência do país, ocorrida em 1956.


A mudança foi provocada por protestos que ocorreram sucessivamente na capital, Cartum, desde o final de 2018. A frágil estabilidade interna se quebrou com o aumento exponencial do preço de itens como pão e gasolina. Atualmente, negociam os rumos do governo central do Sudão a Associação de Profissionais Sudaneses (APS) e o conselho de transição militar que depôs al-Bashir. A demanda atual da sociedade civil local é a de que o conselho militar seja substituído por um outro conselho de natureza civil-militar.


Omar al-Bashir personifica perfeitamente o conceito de ditador. Acusado no Tribunal Penal Internacional por assassinatos em massa, estupros e pilhagens em Darfur (região a oeste do país, que faz fronteira com o Chade), foi o primeiro presidente em exercício indiciado pelo Tribunal e com mais de um mandado de prisão expedida. Internamente, o Presidente é acusado de fraudar eleições e de estabelecer um governo marcado pela corrupção. Economicamente, o país sob sua gestão foi marcado por oscilações. No que se refere à balança comercial sudanesa, o país depende em grande parte de suas exportações de petróleo, tendo a China, os Emirados Árabes Unidos (EAU) e a Arábia Saudita como grandes compradores e investidores em infraestrutura.


De fato, se Omar al-Bashir resistiu por tanto tempo no poder, isso se deve ao importante apoio recebido da China, Rússia, Turquia e dos países da Liga Árabe. Esse conjunto de países abria brechas nos fortes bloqueios estabelecidos pelos países ocidentais. Dessa forma, a queda de al-Bashir representa um ponto de inflexão no jogo geopolítico regional, apesar da baixa cobertura midiática nos veículos ocidentais. Esse jogo está centrado na permanência ou não de um governo militar em Cartum, cujo resultado certamente não virá sem a interferência externa, tendo em vista os projetos sino-russos de influência na África e dos interesses estadunidenses no Mar Vermelho.


As revoltas que culminaram na deposição de al-Bashir podem, ainda que no longo prazo, transbordar para países cujas realidades estão semelhantes às do Sudão. São os casos da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Egito. O resultado obtido pela população sudanesa pode aquecer e motivar uma espécie de “fase dois” da Primavera Árabe, cujos protestos também ocorrem na Argélia, Iraque, Jordânia e Marrocos e podem colocar em xeque os governos de Argel e Cairo de maneira mais imediata. Além do mais, o Sudão vem sendo peça valorosa no que diz respeito à região do Golfo Pérsico.


Dono de uma política pendular em se tratando da crise pérsica, o Sudão se manteve próximo tanto da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes como de Qatar A Turquia, em setembro de 2018, assinou acordo de investimentos em exploração e produção de petróleo que gira na casa dos US$ 100 milhões ao Sudão, montante que se soma ao investimento já firmado de US$ 800 milhões, destinado ao setor da agricultura sudanesa. Por outro lado, o setor militar sudanês compartilha de uma aliança histórica relevante com os membros da Liga Árabe e a crise no golfo intensificada com a guerra civil iemenita pode demandar um posicionamento mais contundente partindo de Cartum.


De perspectiva global, a deposição de al-Bashir pode significar uma derrota aos interesses sino-russos, caso o governo civil demandado pelas lideranças assume o poder. A China, em sua incursão rumo ao estabelecimento de uma zona de influência na África, iniciou projetos no Sudão e praticamente manteve al-Bashir no poder. Os investimentos infraestruturais chineses no Sudão garantiram, por um tempo considerável, oportunidade de emprego e renda aos sudaneses, o que, consequentemente, trouxe certa estabilidade econômica ao país.


Junto da EAU e da Arábia Saudita, a China é o país que mais compra e mais investe no Sudão e, em contrapartida, tinha do ex-presidente garantias de apoio, além de ser o portão de entrada ao continente africano. Igualmente, o governo russo firmou recentes acordos militares com os sudaneses que implicam a construção de postos de abastecimento aos navios de guerra russos, mas que também sugerem a construção de uma base naval que dá saída ao poderio russo ao Mar Vermelho.


Do que cabe ao posicionamento do Atlântico Norte, os Estados Unidos e países da União Europeia apoiam as manifestações civis que demandam por democracia e direitos humanos, ao mesmo tempo que sistematicamente sancionaram o governo do ex-presidente. A transição e mudança de regime rápida pode colocar em xeque a continuidade da influência sino-russa no país e enfraquecer o projeto de influência não-ocidental na África.


Por fim, apesar da transição para um governo civil parecer positivo para a população sudanesa como um todo, uma vez que o regime democrático garantiria maior transparência, conquistas de direitos civis e políticos, um governo civil não significa, especificamente no caso sudanês, política pública para todo o Sudão. É crucial ter em mente que o país é marcado por uma segregação étnica, cujas raízes datam de períodos mais antigos que a própria formação dos Estados-nação europeus. O Sudão, como hoje é conhecido, foi formado, resumidamente, a partir de três grandes populações: da Núbia ao norte, dos Furis à oeste e dos Funjes ao sul (OGOT, 2010) e, tanto o governo militar, quanto os civis que hoje o contestam pertencem à mesma “família” setentrional.


Na esteira da assertiva anterior, Sara Abdel Galil, líder da APS, e Muzan Abdul Samiaa, cuja fotografia repercutiu no noticiário ocidental, são médicas formadas no Reino Unido, protagonistas de protestos que incendiaram a população sudanesa quando suas ações levaram-nas a uma condenação de vinte chibatadas em praça pública e um mês de prisão, representam a face de uma elite não militar sudanesa, nortenha, cujas aspirações não são tão nacionalistas, mas concentradas no bem-estar de seu próprio “ramo constitutivo”.


Apesar de ser legítimo e louvável a ação de mulheres na avant guard de protestos num país marcado pela opressão institucional encabeçada pelo seu ex-presidente, o que se pretende chamar a atenção aqui é que não é automaticamente factível vislumbrar uma expansão das prerrogativas estatais, no que diz respeito à promoção de políticas públicas visando o bem-estar e qualidade de vida que vá para além do norte sudanês, mantendo, assim, a histórica negligência às regiões sul e no Darfur.


É essencial que haja uma análise sóbria e prudente dos eventos que recém ocorreram e cujas consequências abarcam múltiplas possibilidades. O fato é que não se trata de um evento de curto alcance em nível geopolítico e pode representar mais um espaço de disputa entre os Estados Unidos e a China. Internamente, é preciso haver cautela quando se observa a quem serve a substituição de regime e o quão aberto para mudança o setor militar apresentar-se-á quanto à sua retirada do poder. O caso é que Omar al-Bashir caiu e com isso se encerra mais um ciclo da vida política sudanesa — historicamente, períodos de transição não têm sido pacíficos no país.


Referências:

OGOT, B. A. História Geral da África: África do século XVI ao XVIII. UNESCO Office Brasilia. 2010. ISBN: 978-85-7652-127-3. 1208p.

Imagem: Omar Al-Bashir AU Summit/ US Navy CC.

Lucas de Oliveira Ramos é mestrando em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e professor-bolsista do curso de Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca.

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