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Abuso e Exploração Sexual nas Operações de Paz da ONU: a persistência de um problema


Gênero e Segurança Internacional

Em 1993, em meio a acusações de violência sexual contra os integrantes da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Camboja, o Representante Especial do Secretário Geral, o japonês Yasushi Akashi, reagiu com a afirmação de que “meninos serão sempre meninos”. À época, nenhuma medida foi autorizada pela ONU para investigar as denúncias feitas pela população local. Este não foi um caso isolado e os atos de violência cometidos pelos promotores da paz persistiram ao longo dos anos. De 2004 a 2016, estima-se que mais de 2.000 alegações de exploração e abuso sexual tenham sido registradas junto à ONU. Somente entre o início de abril e o fim de junho de 2018, a organização confirmou o recebimento de 70 novas acusações, envolvendo não apenas as equipes das operações de paz, como também de agências, fundos e programas especializados. As denúncias apontam violações físicas e mentais, incluindo práticas de estupro, troca de comida e artigos de higiene pessoal por sexo, escravidão sexual, tráfico e pornografia infantil.


Muito embora os números sejam alarmantes, as acusações não são novidade para a instituição. Relatórios publicados por Save the Children e Human Rights Watch apontam a gravidade e recorrência do problema desde a década passada. Os porta-vozes da ONU frequentemente reagem com indignação, enfatizando a necessidade de medidas drásticas para conter a prática sistemática e reiterada de atos abusivos. Em 2015, Ban Ki-moon declarou que atos de abuso e exploração sexual eram “o câncer do sistema [ONU]”. Dois anos depois, seu sucessor, Antonio Guterres, afirmou ser necessário uma “mudança na estratégia de jogo” para lidar com o problema.


Com efeito, a ONU tem enfatizado a aplicação da política de tolerância zero. Os discursos e as ações, contudo, têm sido insuficientes, seja pelo fato de a ONU não possuir competência jurídica para punir os envolvidos ou pela dificuldade de lidar com a desigualdade de gênero nas sociedades onde atua e dentro de sua própria instituição. Cabe lembrar que a ONU é uma organização que não dispõe de um exército internacional e, por isso, sobrevive da ajuda material, pessoal e financeira de seus Estados-membros. Sendo assim, o funcionamento das operações de paz depende do interesse político dos países que contribuem com tropas militares e financiamento adequado para suprir as demandas da organização. Por conta desse arranjo, a jurisdição disciplinar do Estado contribuinte sobre os seus nacionais é preservada, o que impede a ONU e o país anfitrião de aplicar medidas punitivas contra os soldados acusados de atos de violência sexual. Assim, apesar de as Nações Unidas tentarem, por meio de discursos e códigos de conduta, disciplinar os soldados das missões de paz, somente os Estados que enviam contingentes dispõem de poder disciplinar e punitivo sobre eles.


Portanto, um dos grandes desafios é o fato de a seleção e o treinamento dos soldados ficarem sob a responsabilidade de seu país de origem. Vários relatórios e medidas sobre o assunto foram publicados pela ONU nos últimos vinte anos, mas a organização não pode obrigar os países a respeitarem os acordos ou executarem as diretrizes institucionais estabelecidas. Além disso, a necessidade de mão-de-obra para cumprir com as atividades imputadas à uma instituição de porte universal faz com que muitas vezes a cultura do silêncio seja perpetuada.


Importante lembrar que os soldados são frequentemente enviados para atuar em ambientes de extrema fragilidade, como os de conflito e pós-conflito, marcados pela pobreza, miséria e relações desiguais de poder. Nesses cenários, as forças de paz ocupam claramente uma posição privilegiada, alojados em espaços protegidos e de posse de um uniforme diferenciado, com símbolo da ONU, para os distinguir da população local. A expectativa para muitos é a da chegada de salvadores ou heróis, detentores de autoridade e recursos para transformar a realidade local. Indo na contramão das promessas, alguns representantes da ONU tiram proveito de sua posição de poder para perseguir, discriminar oprimir e violar sexualmente, principalmente mulheres e meninas. Os sujeitos desta violência parecem ser majoritariamente homens, segundo o Global Study, estudo publicado pela ONU Mulheres em 2015, onde consta que nenhuma mulher atuando a serviço da ONU foi acusada de cometer crimes sexuais.


Nesse momento, a questão do gênero vem à tona. As relações desiguais de gênero situam as mulheres em um espaço social inferior. Em sua forma extrema, a desigualdade se manifesta por meio da violência, revelando preconceitos e anseio por dominação. Desse modo, os atos de abuso e exploração sexual cometidos por soldados da ONU têm se constituído em um fenômeno social, com raízes complexas, que reifica a diferenciação entre homens e mulheres, cabendo a elas o lugar de subordinação. Assim, para lidar com o problema não basta apenas evidenciar sua recorrência, mas também é preciso considerar os impactos desses atos brutais nas vidas de mulheres e meninas, indagando sobre suas necessidades, experiências e traumas.


Encarando que a situação perpassa questões de poder e de gênero, é possível imaginar que quando os soldados da paz dispõem de escova de dentes, sabão, alimentos e dinheiro, isto se torna suficiente para atrair os que estão em busca de segurança, em uma condição passiva. Muito embora a ONU proíba interações sexuais entre forças de paz com menores de 18 anos, independentemente da idade local de consentimento do país anfitrião, o final é quase sempre o mesmo. Segundo Anderlini (2017): “algumas meninas engravidam, outras podem ficar doentes, mas os soldados desaparecem e as autoridades normalmente negam, ofuscam ou prometem investigações que, em última instância, não levam a lugar nenhum.” Mesmo no caso de indivíduos com mais de 18 anos, eles provavelmente não estão fazendo uma escolha real quando aceitam ter encontros sexuais com os soldados. A decisão é quase sempre movida por necessidade, medo ou insegurança, o que permite questionar o valor de seu consentimento.


As relações sexuais entre forças de paz e a população local não são comuns ou naturais; tratam-se, na maioria das vezes, de crimes sexuais que precisam ser punidos urgentemente. Além de um sistema de investigação, verificação e punição que funcione, faz-se necessário um esforço para mostrar que a atuação desses perpetradores é posicionada socialmente, quase sempre marcada por preconceitos contra o gênero feminino.

Tamya Rebelo é doutora em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente professora dos cursos de Relações Internacionais do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e do Centro Universitário SENAC.

Imagem: Kimberly Alves Digolin.

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