“Nós não vamos pagar nada, é tudo free”: o Centro de Lançamento de Alcântara entre os interesses com
Aluga-se é uma composição de Raul Seixas e Claudio Roberto, presente no álbum “Abre-te, Sésamo”, lançado em 1980. A música faz uma crítica ao problema histórico brasileiro de não saber aproveitar os recursos nacionais e optar pela via mais fácil de ceder esses recursos ao interesse estrangeiro, vendendo a opção da privatização como a única alternativa possível. A canção foi lançada em um momento que testemunhou os limites do modelo político-econômico desenvolvimentista, no qual o Estado possui papel de indutor do desenvolvimento. Foi sob essa orientação que o setor de Ciência e Tecnologia atingiu seu ápice e, quando entrou em crise, agravada na década de 1990, foi, nos termos de Raul, alugado, já que “o dólar deles paga o nosso mingau”. Essa realidade não foi diferente no âmbito aeroespacial, especialmente para o Centro de Lançamentos de Alcântara (CLA).
O CLA foi criado em 1983, num contexto em que o objetivo político no setor aeroespacial era dotar o país de autonomia tecnológica, a partir de três investimentos chave: a produção do seu primeiro veículo lançador de satélite (VLS), a conquista da tecnologia de satélites e a construção de uma base de lançamentos em um lugar estratégico e com um território ampliado, para explorar seu potencial econômico. No entanto, a instabilidade política e a crise econômica nacional deixaram os objetivos de autonomia em segundo plano, fazendo com que, além da diminuição dos investimentos necessários para a manutenção e atualização dos projetos, o país aumentasse sua dependência externa, já que as atividades aeroespaciais se tornavam cada vez mais presentes no dia a dia político e social.
Foi nesse contexto que, a partir de meados da década de 1990, o então governo Fernando Henrique Cardoso optou por explorar o potencial comercial da base, com o objetivo duplo de inserir o Brasil no mercado de lançamento de satélites e, com o lucro das atividades, resgatar o programa espacial brasileiro. Essa estratégia já promovia uma inserção brasileira bastante prejudicada, uma vez que o país ainda não dominava a principal tecnologia: o VLS. Contudo, apostou-se na localização geopolítica estratégica do CLA, a qual, por ser próxima da linha do Equador, promovia uma economia de combustível para os lançamentos. Assim, o país assinou importantes acordos de cooperação com países interessados nesse potencial da base, e que eram dotados de tecnologia de ponta.
No entanto, embora essa estratégia pareça ser a de resultados mais imediatos e de maior eficiência, seus limites aparecem justamente no fato de que, sem um mínimo de autonomia estratégica do país e desconexa de um projeto político voltado para a conquista da autonomia e do desenvolvimento, o resultado é o aprofundamento da dependência tecnológica e da subordinação aos interesses estrangeiros. Nesse sentido, os acordos com os EUA e a Ucrânia são os mais emblemáticos.
A assinatura do primeiro acordo de cooperação com os EUA ocorreu em 1996, por meio do qual se estabeleceu as bases jurídicas que iriam apoiar os futuros projetos conjuntos. Durante esse período, a necessidade de se aproveitar e atualizar o potencial comercial do CLA aumentou e, por isso, em abril de 2000, foi assinado o acordo de salvaguardas tecnológicas, cujo objetivo oficial era garantir a proteção da tecnologia estadunidense, quando seus materiais estivessem alocados no Centro, de modo que a contrapartida fosse a concessão das licenças necessárias para que seus produtos pudessem ser operacionalizados.
Contudo, os critérios definidos pelos EUA, e acatados pelo Brasil, representavam, acima de tudo, a cessão do controle brasileiro sobre uma parte da base e sobre a fiscalização dos materiais que iriam chegar. Pelo acordo, parte do área do Centro ficaria exclusiva às atividades e aos representantes estadunidenses, de modo que mais ninguém poderia entrar sem a autorização dos EUA; os materiais enviados não poderiam ser inspecionados pela Alfândega brasileira; os representantes estadunidenses não poderiam revelar os dados básicos desses materiais, os quais podem conter elementos radioativos e tóxicos e acabariam prejudicando o meio-ambiente e a própria população habitante das comunidades próximas ao Centro.
No entanto, a questão mais polêmica eram as chamadas “salvaguardas políticas”, critérios que subordinavam as decisões políticas brasileiras aos interesses estadunidenses, como: o impedimento de que os recursos obtidos com as atividades comerciais do Centro fossem alocados no programa nacional de produção ou aquisição de veículos lançadores; a imposição de que as futuras cooperações espaciais do país ocorressem nos mesmos moldes do presente acordo; a imposição de que o país não permitisse atividades comerciais com países não-membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísses (MTCR - o que era o caso da China, com a qual o Brasil possui um importante histórico de cooperação na área de satélites). Essas salvaguardas políticas não tinham qualquer relação com o objetivo do acordo de proteção de tecnologia e, especialmente pelo teor restritivo e unilateral, não foi aprovado pelo Congresso Nacional, embora também não tivesse sido retirado de pauta.
No caso da Ucrânia, o primeiro acordo foi assinado em 1999 e, em janeiro de 2002, o governo assinou também um acordo de salvaguardas tecnológicas, visando às atividades comerciais do CLA. Nesse caso, o documento não teve as imposições políticas presentes no acordo estadunidense, porém também apresentou os mesmos critérios de salvaguarda tecnológica, exigindo uma área exclusiva do CLA, restringindo a fiscalização brasileira e se negando à fornecer informações fundamentais sobre a composição dos materiais que seriam operacionalizados. Apesar desses critérios, o acordo foi promulgado e entrou em vigor em 2004.
É possível perceber que a busca pelo aproveitamento comercial do CLA se torna insustentável e prejudicial, quando o foco é a lucratividade sem estar minimamente articulada com um programa mais amplo de desenvolvimento aeroespacial. Isso mostra que, mais que o interesse sobre a renda a partir da comercialização das atividades, o objetivo é a progressiva diminuição de investimentos no setor – e, principalmente, na base –, passando a mensagem de que os ganhos orçamentários imediatos compensariam a ausência da responsabilidade estatal pela manutenção e desenvolvimento de um projeto histórico e necessário para a autonomia do país. Os efeitos de longo prazo são o aprofundamento da dependência econômica e política, abrindo mão não apenas da busca por um lugar no rol de países detentores de tecnologia aeroespacial, mas principalmente pela redução da subordinação a interesses que prejudicam a vida política e social dos brasileiros.
Em 2017, o país retomou as negociações com os EUA no âmbito aeroespacial, especialmente no aproveitamento comercial do CLA. A promulgação do novo acordo-quadro, assinado em 2011, ocorreu em junho de 2018. Com isso, retomamos os debates acerca da utilização de Alcântara e da forma como os interesses de ambos países serão acomodados nos acordos de cooperação. Apesar de se esperar que a negociação não deixe em segundo plano a importância política e social do CLA no desenvolvimento aeroespacial nacional, a experiência histórica mostra que, em tempos de crise econômica e instabilidade política, a busca pela autonomia fica subordinada aos denominados “interesses pragmáticos” que são, na maioria dos casos, a valorização de ações imediatistas que agravam o quadro da dependência nacional.
Adriane Almeida é mestranda pelo PPGRI San Tiago Dantas, pesquisadora do Gedes e bolsista Fapesp.
Imagem: CLA -Centro de Lançamento de Alcântara. Por: Força Aérea Brasileira.
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