As violências contra crianças e adolescentes no Brasil
Nos últimos tempos, brasileiros e brasileiras que possuem importantes cargos políticos – como o próprio presidente, Jair Bolsonaro, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e o ministro da Educação, Ricardo Vélez – têm se manifestado sobre formas de proteger as crianças e os adolescentes no Brasil. Apesar da ênfase em se autoproclamarem defensores da infância e da adolescência, não se discute o que significa, de fato, protegê-las, e a quais formas de violência elas estão submetidas. Frases de efeito como “Nunca a infância foi tão atingida como nos dias de hoje” são repetidas à exaustão, fazendo com que levantar a bandeira da defesa das crianças e dos adolescentes torne-se um senso comum, com baixos esforços de reflexão e que diz pouco sobre as formas de violência na nossa sociedade brasileira. Refletir sobre as consequências e as manifestações da violência é um primeiro passo para elucidar essa situação.
Johan Galtung (1969; 1990), analista da violência e da paz cujo trabalho ganhou destaque na década de 1960, já pensava a conceituação da violência de forma ampla. O autor propôs que violência é o desequilíbrio entre a realização potencial e real das capacidades humanas. Em outras palavras, Galtung considera que há violência quando os indivíduos não conseguem desenvolver suas plenas potencialidades humanas – seja por um impedimento direto de um indivíduo sobre o outro ou por um obstáculo estrutural da sociedade que nega aos seres humanos condições de justiça social. Segundo esse raciocínio, a violência - física e psicológica - pode se expressar nas formas direta, estrutural e cultural.
A violência direta manifesta-se em ocasiões em que o sujeito e o objeto da violência são identificáveis como indivíduos concretos. Essa forma de violência expressa de forma mais explícita, por exemplo, em atos de violência de um indivíduo sobre outro, como em um assassinato, ataque com armas ou mesmo por meio de armas de destruição em massa. A violência direta impressiona e choca, pois é visível, preocupante, gera medo e insegurança pessoal. Pode ser percebida, identificada, denunciada e seus agentes punidos (GALTUNG 1969).
Não menos preocupante é a violência estrutural (ou indireta). Na concepção de Galtung, a estrutura da sociedade em que os indivíduos nascem os impede de desenvolver todo o seu potencial como humanos porque não lhes são dadas as mesmas oportunidades (FERREIRA, 2016; GALTUNG, 1969; 1990). Isso abarca as desigualdades sociais; as relações desiguais de poder; o acesso desigual a serviços básicos de educação e saúde; discriminação racial; discriminação de gênero; exploração econômica de uma classe social sobre as outras. A violência estrutural manifesta-se independentemente da existência de um indivíduo praticando atos diretos de violência sobre outro. Ela existe na estrutura das sociedades e está ancorada na injustiça social.
Por sua vez, a violência cultural ocorre por meio de símbolos, imagens, religião, ideologia, discursos inflamados, “onipresença do retrato do líder”, hinos e paradas militares, linguagem e arte, padrões de comportamento e consumo (GALTUNG, 1990, p. 291). Ou seja, são valores produzidos de cima para baixo, aquilo que possui valor simbólico capaz de justificar a dominação das estruturas de violência e naturalizar a violência estrutural. A combinação da violência estrutural com a violência cultural pode resultar na violência direta, no sentido em que as pessoas encontram formas de se rebelar contra esse sistema desigual, que as forçam a buscar soluções pela violência direta (GALTUNG, 1969; 1990).
Justamente por serem profundas e enraizadas na sociedade e não tão explícitas como atos de violência direta, as formas estrutural e cultural acabam por ficar menos visíveis nas análises sobre violência, permanecendo quase intocáveis em uma sociedade que pensa mais em formas paliativas de frear a violência direta, e menos em formas de realmente tratar a violência estrutural. Mais do que isso, frequentemente as violências estrutural e cultural não são sequer consideradas formas de violência, mas sim consequências naturais do mérito de uns e demérito de outros: os indivíduos em melhores condições socioeconômicas são merecedores de desfrutar tais benefícios de vida, enquanto os indivíduos que não possuem essas condições são culpabilizados por não atingirem esse mesmo patamar social.
Envolvidas por esses três tipos de violência estão as crianças e adolescentes. De fato, eles estão sujeitos à violência direta quando são vítimas de sequestros, assassinatos, tráfico de crianças, pedofilia, entre outros. Porém, mesmo as formas de violência direta os atingem de maneira discriminatória. As crianças e os adolescentes negros e de baixa renda são mais vulneráveis a esse tipo de violência. São vítimas da violência extrema do próprio aparelho de segurança estatal que, em tese, foi feito para defendê-los. Por meio de atos de repressão policial desproporcionais – como espancamentos e mortes – em periferias de centros urbanos, presencia-se a banalização da violência contra jovens negros e pobres.
As crianças e os adolescentes brasileiros já partem de níveis socioeconômicos muito distintos. A violência estrutural é expressa quando lhes é dada diferentes chances de acesso à educação, quando lhes é negada acesso a lazer e saúde (direitos que estão garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente). Ocorre também quando esse mesmo Estatuto não é visto como garantidor de direitos, mas como um malefício que deve ser descartado, pois incentivaria a “malandragem e a vagabundagem infantil”. Violência é utilizar crianças e adolescentes como instrumentos morais para espalhar notícias deturpadas que aprofundam ainda mais a naturalização da violência estrutural. Violência também é manipular e inventar (des)informações sobre a educação sexual e ao cercear o acesso dos jovens à educação sexual nas escolas (afetando principalmente as meninas, que são culpabilizadas pela gravidez indesejada). A violência contra a criança e o adolescente manifesta-se ao naturalizar a morte de crianças e adolescente em favelas e tratá-los como bandidos. Por meio de símbolos culturais como discursos, imagens e cenas de ódio, além de incentivar crianças e adolescentes a utilizarem armas, a violência se faz presente ao naturalizar uma cultura de ódio e hostilidade.
Portanto, a violência consiste em negar o acesso às mesmas oportunidades de desenvolvimento, além de não promover o acesso a uma cultura que incentive a paz. Ademais, é subestimar a capacidade de agência dos jovens ao moldá-los sob a rigidez do ensino militarizado como melhor forma de educação sem, entretanto, discutir junto à sociedade que tipo de educação está sendo oferecida e como ela contribui para formar cidadãos críticos e pensantes e não apenas obedientes às formas de dominação cultural e estrutural.
A proteção de crianças e adolescentes está relacionada a todas as políticas que incidem – direta ou indiretamente - sobre a infância e a adolescência, tais como o acesso a creches, direito a licença maternidade e paternidade, direitos trabalhistas para que os pais possam também ter condições de cuidar de seus filhos e filhas da melhor maneira. Logo, proteger crianças e adolescentes abarca também protegê-los desse tipo de violência estrutural, ou seja, fornecer condições para que toda a sociedade possa cuidar de nossas crianças e adolescentes e para que eles tenham plenas capacidades críticas para serem agentes de transformação mundial.
É preciso levar em consideração esse ambiente de constante violência direta, estrutural e cultural para entender que, mesmo quando crianças e adolescentes são agentes da violência direta - isto é, quando praticam atividades criminosas como furto, roubo, tráfico de drogas – muitos não o fazem por “vagabundagem e malandragem infantil”. Fazem-no porque estão inseridos em uma estrutura social em que cometer atos criminosos apresenta-se como uma possível forma de sobrevivência e de driblar algumas manifestações da violência estrutural, visto que fornecem certo ganho econômico e um vislumbre de ascensão social.
Ao enxergarmos o quanto as violências são complexas, variadas e profundas, concluímos que respostas simples para proteger crianças e adolescentes são ineficazes e insuficientes. Além disso, soluções simplistas propostas por autoridades brasileiras acabam sendo formas de perpetuar as violências, no sentido em que não proporcionam discussões construtivas que evidenciem a dimensão estrutural que a temática possui. Nesse cenário, crianças e adolescentes não conseguem atingir seus plenos potenciais para se tornarem, elas próprias, agentes de transformação no mundo.
Referências bibliográficas:
GALTUNG, Johan. Violence, Peace and Peace Research. Journal of Peace Reasearch, v.6, n.3, 1969.
_____. Cultural Violence. Journal of Peace Reasearch , v. 27, n.3, 1990.
FERREIRA, Marcos Alan. Contemporaneidade dos Conceitos de Paz e Violência em Johan Galtung e sua aplicabilidade para a América do Sul. In: Winand, E.; Rodrigues, T. and Aguilar, S. Defesa e Segurança no Atlântico Sul. Aracaju: UFS Press, 2016.
Imagem: CC/ Gustavo Minas.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC/SP) e pesquisadora no Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).