Xeque-mate? A narrativa de ajuda humanitária pode ser decisiva para a crise na Venezuela
A primeira semana de fevereiro de 2019 foi marcada por notícias alarmantes sobre o agravamento da crise na Venezuela. A dissidência da oposição a Maduro na figura do auto proclamado presidente interino Juan Guaidó se estabeleceu em uma base institucional bastante controversa, e mobilizou contatos internacionais antichavistas para arregimentar apoios e legitimidade na narrativa da disputa política tanto doméstica quanto internacional.
Os atores hemisféricos mais ativos deste imbróglio no campo externo merecem menção e detêm predicados para determinar os próximos encaminhamentos da crise nos espaços de negociação global. Isto não apenas por se tratarem de partes relevantes em disputas internacionais, mas também pela postura que ensejam quando se envolvem em crises políticas de Estado, em especial na órbita das Américas. Estão destacados assim os Estados Unidos - opositores históricos do bolivarianismo, e ainda mais ferozes contra Maduro na administração de Donald Trump -, o Brasil - no seu papel de potência regional, passando por uma propaganda de virada radical no tom da política externa com a chancelaria de Ernesto Araújo e prometendo um país alinhado aos Estados Unidos a partir de janeiro deste ano -, e o Grupo de Lima, composto por 14 países americanos interessados na crise venezuelana, que impulsionou o isolamento de Maduro nos últimos meses. O quadro continental conta ainda com as dissidências do México e do Uruguai, que priorizam uma resolução através do diálogo político para a crise.
Das narrativas possíveis a serem usadas por esta constelação de agentes antichavistas, a oferta de montantes expressivos na modalidade de “ajuda humanitária” foi escolhida para pressionar o governo bolivariano. Esta opção não deriva da benevolência hemisférica com a população venezuelana, nem mesmo de um jogo de palavras descuidado, mas de estratégia desenhada para sufocar a capacidade de ação do herdeiro de Hugo Chávez. Isto, porque ainda no final de 2018, o expediente da Responsabilidade de Proteger (R2P) foi aventado como possível para uma ação internacional no país.
A R2P é um controverso instituto normativo no seio das Nações Unidas (ONU), por prever – em última instância – a intervenção armada no território sem o consentimento do Estado, quebrando a ideia de inviolabilidade da soberania territorial, fundamento central do sistema de segurança coletiva onusiano. O molde deste instituto jurídico foi proposto em 2001 pela Comissão Internacional sobre Intervenção e Soberania Estatal, adotado em 2005 pela Assembleia Geral da ONU e reformado entre 2009 e 2010. Para a sua ativação são necessárias condições circunscritas à categoria de crimes humanitários consolidadas no regime de direitos humanos da ONU: limpeza étnica, genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. A única intervenção destacada a partir da interpretação desse instrumento jurídico ocorreu em 2011 na Líbia na e resultou na deposição do ditador Muammar Gadaffi. A operação militar foi liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e degringolou nos meses seguintes em uma crise institucional, política, econômica e social que até hoje aflige o país no Norte da África. Desde então, a R2P é cercada de reticências e oposições especialmente de potências não ocidentais, nomeadamente Rússia e China.
Com este histórico, a veiculação do expediente na Venezuela gerou movimentos opostos entre os membros permanentes do Conselho de Segurança. Os representantes de Estados Unidos e Rússia propuseram textos diametralmente distintos para a votação de uma resolução no órgão deliberativo. A redação proposta pelos representantes estadunidenses expressou apoio integral à Assembleia Nacional como única instituição democraticamente eleita na Venezuela; o texto russo indicou atenção para tentativas de intervir em matérias de jurisdição doméstica e para propostas do emprego de recursos coercitivos contra a independência política da Venezuela. Ressalta-se que a posição chinesa e russa na questão venezuelana também deriva de laços políticos, econômicos e militares estabelecidos ao longo dos governos chavistas. Os empréstimos chineses ao governo venezuelano, pagos através de remessas de petróleo, e a proximidade militar em relação à Rússia não devem ser ignorados.
Contudo, a antecessora da R2P já possui outros tons de legitimidade. A ideia de intervenção humanitária – acompanhada do provimento de recursos para a entrega de ajuda humanitária – sofria com enorme resistência na época de formulação da R2P, porém com sucessivas reformas e com a atuação malfadada na Líbia, os rótulos humanitários voltaram a ser utilizados como uma forma mais branda de presença internacional. Sua prerrogativa passa pela autorização do Conselho de Segurança a partir de entendimentos que configurem a situação como “ameaça à paz e à segurança internacional”, e permite eventualmente o uso de tropas militares na condição de proteção de civis.
Ao invocar este tipo de etiqueta para as remessas enviadas à Venezuela, o Grupo de Lima e o governo Trump cercaram Maduro no xadrez internacional. Em um contexto de caos econômico, emigração extensa, uma oposição parlamentar, e em uma região em que os vizinhos mais proeminentes no tema - Brasil e Colômbia - apoiam decisivamente a postura estadunidense, o envio de equipamentos humanitários configura uma ação bastante perspicaz que obrigava o chavista ou a permitir o crescimento de presença dos opositores no território nacional, ou barrar qualquer tipo de entrada colocando-o em situação ainda mais frágil aos olhos internacionais.
Sob o pretexto de impedir o avanço de iniciativas ditas imperialistas, Maduro negou o ingresso de remessas de auxílio humanitário no território venezuelano. O presidente contestado argumenta que a narrativa da emergência humanitária em seu país é um artifício pirotécnico “fabricado em Washington” para justificar a intervenção internacional. Ademais, o mandatário venezuelano credita às sanções internacionais o agravamento da crise econômica no país. Um episódio de monta curiosa se soma ao imbróglio político sul-americano e lhe confere matizes pitorescos: o Estado venezuelano enviou a Havana um navio carregado de suprimentos a título de ajuda humanitária para os esforços de recuperação cubanos após a passagem de um tornado pela ilha cubana.
A reiteração das ameaças do governo estadunidense em empregar recursos coercitivos ao intervir na conjuntura venezuelana e o minguar do apoio político ao governo chavista reserva desafios a uma resolução da crise contemporânea que preconize a proteção da população e garanta o acesso a bens básicos. É necessário indicar que uma opção intervencionista rasa, que priorize a deposição de Maduro, tende a alongar a crise que se aplaca sobre a população venezuelana.
É insuficiente insistir que parcela relevante das intervenções robustas conduzidas a partir de uma justificativa humanitária implicaram em processos longevos de instabilidade política e, por vezes, o agravamento das condições econômicas e sociais. Por outro lado, a negativa do mandatário bolivariano em acolher a necessidade de amparo à população venezuelana tende a avolumar os efeitos negativos da crise em curto prazo. Nesse sentido, é preciso superar a falsa dicotomia entre a inação e a condução de ações musculares que provê álibis a potenciais efeitos colaterais que incidem sobre as sociedades sob intervenção (ORFORD, 2003, p. 17).
A esta altura, Maduro está encurralado e a retórica sobre o envio de ajuda humanitária serve de asfixiador de sua legitimidade em todos os campos. O destino da Venezuela permanece incerto, mas é seguro dizer que qualquer alternativa que não gere proteção concreta ao povo venezuelano, e vise apenas a reformulação do mando político do Estado, prolongará a agonia social vivenciada há anos. Hoje, como outrora, faz-se necessário considerar alternativas que garantam o usufruto de direitos e liberdades fundamentais que se distanciem da violência intervencionista.
Referências bibliográficas:
ORFORD, Anne. Reading Humanitarian Intervention: human rights and the use of force in international law. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
Letícia Rizzotti Lima e Leonardo Dias de Paula são mestrandos em Relações Internacionais pelo PPG RI San Tiago Dantas e pesquisadores do Gedes.
Imagem: Manifestante durante protesto contra Maduro na Venezuela. Por: Efecto Eco.