O que a atuação dos Estados Unidos no Afeganistão diz sobre gênero e guerra
Em dezembro de 2015, o Secretário de Defesa Ashton Carter anunciou uma mudança significativa no recrutamento militar dos Estados Unidos: a abertura de todas as posições de combate para mulheres. Naquele momento elas representavam 15% do contingente – taxa que permanece atualmente e faz dos Estados Unidos um dos países com a maior proporção de mulheres nas fileiras militares. Ainda assim, uma regulamentação vigente desde 1996 impedia que elas ocupassem posições relacionadas ao combate direto, com sua atuação sendo limitada às funções de apoio e logística.
Essa restrição representava uma barreira significativa para as mulheres, visto que a atuação em combate é crucial para o avanço na carreira militar. Todas as unidades foram orientadas a realizar as adequações necessárias para que a medida fosse efetivada sem exceções. Dessa forma, várias especialidades tradicionalmente masculinas como a infantaria do Exército, o Corpo de Fuzileiros Navais e os batalhões de Operações Especiais se tornaram possibilidades de atuação para as militares. Todas essas mudanças ocorrem em meio ao sempre intenso debate sobre a presença das mulheres no front. Diferenças físicas e biológicas, normas sociais relacionadas a gênero e possíveis impactos na coesão militar são alguns dos pontos de divergência nessa discussão.
Apesar de qualquer debate polêmico, a iniciativa do governo veio para oficializar algo já recorrente. Na prática, as mulheres atuavam na linha de frente há algum tempo, especificamente nos conflitos no Afeganistão e no Iraque. A mudança nos parâmetros de recrutamento iniciada em 2013 é frequentemente apontada como consequência direta dessa atuação. Isso porque, nos dois casos, as características do conflito assimétrico tornaram imprecisa a distinção entre front e retaguarda. No caso do Afeganistão, essa assimetria é evidenciada no confronto entre as tropas da OTAN e as forças não-convencionais dos grupos considerados insurgentes, especialmente o Talibã. Nessas condições, o conflito extrapolava os limites do front, e as mulheres estiveram na linha de fogo, mesmo quando atuando estritamente em posições de apoio.
Especificamente no caso do Afeganistão, a atuação das mulheres ocorreu através da implementação dos Female Engagement Teams – ou Equipes de Engajamento Feminino, em tradução livre. Formadas exclusivamente por mulheres, essas equipes eram responsáveis pela aproximação com a população civil, precisamente com as mulheres afegãs, no contexto da estratégia de contra-insurgência. Na batalha contra o Talibã, conquistar corações e mentes da população era essencial. No entanto, uma parcela significativa da população afegã estava fora do alcance da influência militar dos Estados Unidos. Principalmente nas regiões rurais do Afeganistão, onde a ofensiva contra o Talibã enfrentava a maior dificuldade, a aproximação dos soldados estadunidenses com as mulheres afegãs era uma questão bastante complexa e delicada. Para contornar esse desafio cultural, as Equipes de Engajamento Feminino começaram a ser alocadas como unidades de apoio nas missões.
Acompanhando as equipes de infantaria, principalmente em atividades de patrulha e reconhecimento, a atuação dessas militares buscava responder às “sensibilidades culturais”. Responsáveis pela aproximação com as mulheres afegãs, as militares buscavam construir confiança através de conversas e do atendimento às demandas mais práticas da população civil – serviços médicos, por exemplo. Para além das amenidades, essas equipes também estavam mobilizadas no serviço de inteligência, recolhendo informações e até mesmo realizando entrevistas quando desejável. As equipes também ajudavam a aliviar a atmosfera no contato com os civis, já que eram bem-vistas pela população, inclusive pelos homens afegãos.
Os adeptos dessa estratégia afirmam que as militares eram vistas como um “Terceiro Gênero”, distintas da imagem tradicional de mulher e tampouco semelhantes à imagem do homem combatente. Devido às normas ainda vigentes que proibiam as mulheres em posições de combate, elas precisavam ser “anexadas” em vez de “convocadas”, formando equipes de apoio que poderiam auxiliar em basicamente qualquer missão. Essas mulheres deveriam sempre desempenhar as tarefas acompanhadas por homens, ironicamente da mesma forma que as mulheres afegãs.
O caso das Equipes de Engajamento Feminino suscita reflexões sobre a importância das questões de gênero no contexto de guerra. Ainda que nas últimas décadas o acesso das mulheres às forças armadas tenha crescido, sua atuação em combate direto ainda gera muita polêmica. Apesar das restrições legais a esse tipo de atuação, as mulheres foram colocadas na linha de frente no Afeganistão, para facilitar o acesso à outra metade da população local. Os idealizadores dessa iniciativa acreditavam que o contato com as mulheres afegãs era uma oportunidade de ouro: elas saberiam o que ocorre na vida cotidiana da comunidade, além de exercerem influência sobre seus filhos e maridos. A major Nina D’amato, que auxiliou na orientação de algumas equipes, resumiu essas ideias ao afirmar que “se você quer que a sua narrativa seja perpetuada, você tem de focar nas mulheres”¹.
Considerar gênero como variável relevante evidencia aspectos possivelmente inexplorados em análises tradicionais, ampliando o entendimento sobre o conflito no Afeganistão. A complexidade dessa dinâmica é apontada pela forma como as relações de gênero foram instrumentalizadas nesse contexto específico. De um lado, as mulheres afegãs tornaram-se “alvo” da estratégia, a partir do entendimento de que a contra-insurgência falhou ao não estabelecer contato direto com essa parcela da população. Do outro lado, militares mulheres são mobilizadas para atender essa demanda estratégica. Quando útil para os esforços de guerra, as restrições que impediam oficialmente a atuação delas em combate tornaram-se insignificantes.
Essa instrumentalização da feminilidade das militares atesta a importância da reflexão sobre quais são, de fato, as circunstâncias da incorporação das mulheres. E principalmente, qual o contexto de inserção das militares em posições associadas ao combate direto. Ainda que represente uma mudança significativa, a atuação de mulheres no front parece sujeita a construções de gênero tradicionais. No contexto dos conflitos contemporâneos, essas reflexões ganham importância e extrapolam o caso do Afeganistão. Com a ampliação do acesso das mulheres a posições de combate em todo o mundo é essencial acompanhar o que essas transformações podem representar nas dinâmicas de conflito.
¹ MCBRIDE, Keally; WIBBEN, Annick T. R.. The Gendering of Counterinsurgency in Afghanistan. Humanity: An International Journal of Human Rights, Humanitarianism, and Development, v. 3, n. 2, p.199-215, 2012.
Gabriela Freitas dos Santos é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).