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Mulheres, Paz e Segurança: incluindo a questão de gênero nas operações de paz da ONU



O século XX foi acompanhado por uma grande transformação dos conflitos internacionais, marcados pelo crescente envolvimento de redes de atores não-estatais, pela transnacionalidade desses eventos e pelo maior impacto da violência sobre civis. Em meio a essa mudança, e após uma série de experiências malsucedidas em Ruanda e na ex-Iugoslávia, teve início um processo de reforma das operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU), as quais haviam se tornado o principal mecanismo para a resolução de conflitos internacionais ao longo da Guerra Fria. Temas como proteção de civis em conflitos armados e emprego da força pelos intitulados capacetes azuis passaram a desfrutar de maior espaço nos debates.


Foi sob essa conjuntura que a questão dos impactos específicos que os conflitos armados exercem sobre mulheres e meninas foi colocada em pauta. Adotada por unanimidade em 2000, a Resolução 1325 do Conselho de Segurança das Nações Unidas foi o primeiro documento a abordar de modo direto a importância da participação das mulheres nos processos de prevenção e resolução de conflitos, destacando que o empoderamento das mulheres e a igualdade de gênero são fatores cruciais para garantir a manutenção da paz.


Baseada no Relatório "Mulheres, Paz e Segurança", a Resolução 1325 inclui as seguintes proposições: aumentar a participação e representação de mulheres em todos os níveis e etapas da tomada de decisão; promover atenção às necessidades de proteção específicas de mulheres e meninas em conflitos; incluir perspectivas de gênero nos processos de pós-conflito; promover treinamentos sobre perspectivas de gênero em operações de paz da ONU; entre outras.


Desde então, outras sete resoluções adicionais sobre a temática foram adotadas pelo Conselho de Segurança. A Resolução 1820 (2008), que reconhece a violência sexual em conflitos armados enquanto tática de guerra; a Resolução 1888 (2009), a qual fortalece as disposições do Conselho de Segurança para prevenir e combater a violência sexual em situações de conflito, além de criar o cargo de Representante Especial do Secretário-Geral sobre Violência Sexual em Conflitos; e a Resolução 1889 (2009), que destaca a importância da participação de mulheres em todas as etapas dos processos de paz.


Assim como a Resolução 1960 (2011), que solicita a inclusão de dados sobre violência sexual nos relatórios do Secretário-Geral das Nações Unidas, além dos nomes das partes em conflito sobre as quais pesem suspeitas de envolvimento nesses crimes; a Resolução 2106 (2013), que busca fortalecer os esforços para acabar com a impunidade de crimes sexuais em situações de conflito; a Resolução 2122 (2013), a qual estabelece medidas mais robustas para buscar garantir a participação de mulheres nos processos de paz, atribuindo essa responsabilidade ao Conselho de Segurança, aos Estados-membros da ONU e às organizações regionais; e a Resolução 2242 (2015), documento que insta a criação de novas estratégias e recursos na implementação da Agenda.


Esse maior arcabouço de documentos institucionais sobre a temática foi acompanhado pela crescente inclusão de objetivos relacionados à Agenda “Mulheres, Paz e Segurança” em grande parte das resoluções do Conselho de Segurança e dos relatórios do Secretário-Geral. No entanto, é possível notar que muitos desses avanços permanecem restritos ao âmbito da retórica e que a maior presença nesses documentos não tem se refletido em ações e informações consistentes para garantir o monitoramento ou mesmo a revisão das estratégias adotadas.


Segundo dados do Grupo de Trabalho sobre Mulheres, Paz e Segurança – integrado por dezoito organizações não-governamentais que trabalham com a promoção da Agenda ao redor do mundo –, mais de 40% dos mandatos das operações de paz em curso no ano de 2017 associavam mulheres a crianças, em termos de vulnerabilidade, o que acaba subtraindo da mulher seu papel enquanto ator propositivo dotado de agência. Além disso, a maioria dos relatórios do Secretário-Geral elaborados nesse mesmo ano não incluiu elementos sobre o contexto dessas questões ou mesmo recomendações ao final do documento, que usualmente é de onde o Conselho de Segurança extrai dados para futuras revisões e renovações de mandato.


De acordo com a Liga Internacional das Mulheres para a Paz e Liberdade (WILPF, na sigla em inglês), existe um alto volume de gastos em termos de exércitos e segurança militar, mas pouco se avançou na busca por igualdade de gênero e participação efetiva das mulheres nas operações de paz da ONU. Segundo a Liga, esse quadro acaba promovendo a manutenção de violências sexuais e baseadas em gênero como um fenômeno endêmico, além da impunidade nos casos de estupro em contextos de conflitos.


O que parece ocorrer é uma disjunção entre o processo de reforma das operações de paz, iniciado ainda na década de 1990, e a promoção da Agenda “Mulheres, Paz e Segurança”. Ao avançarem em rotas paralelas, o esforço que pode ser observado é a tentativa de incorporar a questão de gênero enquanto adereço das operações de paz, quando o ideal seria repensar as bases sobre as quais essas operações de paz estão assentadas, já incluindo uma perspectiva de gênero que procure tensionar os conceitos de “violência”, segurança” e “paz” desde a sua gênese.


Em suma, apesar de a discussão sobre gênero e empoderamento das mulheres ter sido inserida no processo discursivo – indiscutivelmente uma parte fundamental para o início de qualquer mudança –, a estrutura que envolve as operações de paz da ONU ainda está assentada em gramáticas androcêntricas que possuem como norte apenas a ideia de paz negativa. Em outras palavras, as operações de paz continuam enfocando o fim das hostilidades de modo restrito à violência direta, desconsiderando as violências culturais e estruturais que envolvem os conflitos contemporâneos, bem como seus reflexos específicos nas mulheres e meninas locais.


Enquanto os processos de prevenção, resolução e pós-conflito continuarem marginalizando metade dos seus envolvidos, será possível avançar apenas metade do caminho em direção a um ambiente de maior cooperação e igualdade.


Kimberly Alves Digolin é mestre em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), pesquisadora do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) e professora adjunta no curso de Relações Internacionais da Universidade Paulista (UNIP).


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