Limites da relação entre tecnologia e autonomia nacional: o caso do Satélite Geoestacionário de Defe
O Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (SGDC) é um projeto do governo brasileiro, aprovado em 2013, que envolve o atual Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC) e o Ministério da Defesa, por meio da Força Aérea Brasileira. Ao longo do seu desenvolvimento, o projeto recebeu R$2,7 bilhões em investimentos e é voltado para atender às demandas civis e militares na área de comunicação. Para tanto, opera em duas faixas de frequência: 70% em banda Ka, utilizada para missões civis como a comunicação estratégica do governo e a implementação do Programa Nacional de Banda Larga, aumentando o acesso à internet; e 30% em banda X, para uso das Forças Armadas.
Os satélites geoestacionários são utilizados principalmente para fins meteorológicos e de comunicação. No entanto, a necessidade de um equipamento nacional é antiga, tendo em vista que, atualmente, o acesso a esses serviços depende da disponibilidade de empresas estrangeiras. No caso do setor de comunicação, tanto para fins civis quanto militares, até 2007 o serviço era fornecido ao governo brasileiro pela estadunidense Star One, que opera os satélites da Embratel. Esse recebimento gratuito remonta à privatização da Embraer, em 1998, adquirida pela empresa estadunidense MCI que, em 2004, foi comprada pelo grupo mexicano Telemex. A privatização concedeu o fornecimento dos serviços do satélite às Forças Armadas brasileiras até 2007. Porém, com a necessidade de substituir os satélites, esse acordo deixou de valer e, a partir de 2008, as comunicações militares sigilosas passaram a ser contratadas da Star One por 12 milhões de dólares por ano.
Além da demanda na área de comunicações, o desenvolvimento do satélite geoestacionário insere-se no quadro mais amplo de ascensão das questões de Defesa na agenda política do país nos anos 2000. Exemplos desse movimento foram as iniciativas em prol da revitalização da Base Industrial de Defesa (BID) e o desenvolvimento de medidas voltadas para uma maior institucionalização do setor, como a atualização da Política Nacional de Defesa (PND), em 2005 e 2012, e o lançamento da Estratégia Nacional de Defesa (END), em 2008 e atualizada em 2012. Outra importante medida foi o estabelecimento de parcerias estratégicas com foco na transferência de tecnologia com países como a Ucrânia e a Suécia.
Foi nesse contexto de valorização do setor da Defesa que o SGDC foi iniciado, em 2012, a partir de uma parceria com a França, visando a transferência de tecnologia na produção de satélites geoestacionários. A aquisição do projeto foi feita pela empresa Telebrás que, para o gerenciamento do mesmo, estabeleceu uma joint venture com a Embraer, criando a empresa Visiona. Entre 2012 e 2016, profissionais vinculados ao projeto estiveram envolvidos no processo junto à empresa francesa Thales Alenia Space. Embora houvesse previsões de lançamento do satélite para o fim de 2016, isso só ocorreu no dia 4 de maio de 2017, a partir do Centro Espacial de Korou, na Guiana Francesa.
Contudo, embora o projeto inicial previsse que a operação dos dados do satélite fossem realizadas por empresas nacionais, em fevereiro de 2018 a Telebrás anunciou o contrato estabelecido com a empresa estadunidense Viasat, por meio do qual esta teria acesso a 100% da capacidade da banda Ka do SGDC, com a implementação da rede terrestre e da infraestrutura da Viasat para o fornecimento de serviços de banda larga residencial, empresarial e governamental. A contratação da empresa estrangeira foi justificada pela ausência de interesse de empresas nacionais, quando da publicação do edital para o serviço de banda larga, em 2017. Essa medida levantou protestos das empresas de operação de telecomunicações, as quais alegaram que as empresas nacionais não conseguiriam atender às condições do edital, o qual teria sido flexibilizado para a Viasat. No entanto, em março de 2018 o acordo foi suspenso pela Justiça do Amazonas, devido ao pedido de suspensão protocolado pela empresa amazonense de comunicações Via Direta.
O lançamento do primeiro satélite geoestacionário brasileiro é uma conquista importante que remete ao engajamento do país na produção de satélites, na década de 1990. Embora disponha de um satélite de coleta de dados e outros dois para o sensoriamento remoto – sendo os últimos decorrentes de uma parceria estratégica com a China da década de 1980 –, a alternativa para o país no âmbito das comunicações ainda era a contratação de serviços estrangeiros. Os quais não são custosos apenas em termos financeiros, mas também na questão da segurança, uma vez que o fornecimento das informações depende do controle dessas empresas, mesmo que as estações de controle se situem em território nacional.
A produção de ciência e tecnologia em países em desenvolvimento depende, em larga medida, das parcerias realizadas internacionalmente, e no âmbito aeroespacial isso não é diferente. A alternativa dos governos Lula e Dilma para que essas parcerias ampliassem o horizonte da busca pela autonomia foi a ênfase em projetos de transferência de tecnologia. Trata-se de uma alternativa que possui suas limitações: a aquisição de tecnologia estrangeira pode aprofundar os padrões de dependência de um país, uma vez que se torna refém do processo de produção da mesma, dos serviços para sua atualização, dos materiais para sua produção, etc. Contudo, traz também importantes benefícios, especialmente a aceleração de projetos fundamentais para o governo e a população que, sem a cooperação, poderiam levar mais outros longos anos. Nesse sentido, o lançamento do satélite representa outro importante ganho.
No entanto, se o objetivo era garantir um mínimo de autonomia e segurança nas comunicações governamentais, expandir o acesso à internet para toda a população e, no quadro mais geral, fortalecer a indústria nacional de Defesa, a operacionalização do satélite por uma empresa estrangeira compromete todas essas questões. Por outro lado, também demonstra como o processo de desenvolvimento tecnológico não pode ter pleno sucesso se não estiver inserido em um projeto mais amplo de desenvolvimento social. Primeiramente, não se levou em consideração a capacidade das empresas nacionais de operarem os dados do SGDC em sua totalidade, fator fundamental quando se pretende um projeto totalmente nacional; segundo, o processo de transferência de tecnologia depende fundamentalmente dos recursos humanos disponíveis não só para aquele momento, mas para dar continuidade ao conhecimento adquirido e adequá-lo à realidade do país. Isso não pode se sustentar se o orçamento para a Ciência e Tecnologia sofre grandes cortes e se há um descaso com âmbito da educação do país, especialmente na sua base.
A busca pelo desenvolvimento tecnológico, articulada ao projeto mais amplo de desenvolvimento e autonomia nacional, passando pelas questões de Defesa e Segurança, exige investimentos em todos os setores sociais do país, juntamente com uma articulação das visões de curto, médio e longo prazo dos projetos. A aquisição de tecnologia sem levar em conta os alcances e limites da sociedade na produção ou reprodução da mesma apenas torna mais complexa as dinâmicas de dependência política e tecnológica.
Imagem: Presidente e ministros acompanham o lançamento do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas – SGDC. Por: Beto Barata/Palácio do Planalto.
Adriane Almeida é mestranda em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (UNESP-UNICAMP-PUC-SP) e membro do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES).