A incerteza nuclear
A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos deu início a um furor internacional, com uma intensa mobilização de analistas, especialistas e políticos experientes tentando prever o que o governo Trump pode significar para o mundo. Neste cenário que teve início no dia 9 de novembro, o principal problema parece ser o excesso de incerteza. Diante de um prognóstico ruim, é possível fazer planos, criar estratégias de contingenciamento, traçar rotas de fuga. Mas, diante, do desconhecido, todos os planos, estratégias e rotas podem ser inadequados.
Sem dúvida, neste momento, Trump representa a incerteza. O presidente eleito se contradiz com tanta frequência, que é muito difícil extrair de seus discursos as diretrizes políticas que sua gestão adotará. Ilustrando essa idiossincrasia do magnata americano, Thomas Grove, jornalista do Wall Street Journal, escreveu: “o assessor de política externa de Putin diz que, depois de uma conversa de 30 minutos por telefone com Trump, o Kremlin ainda não está inteiramente certo de qual é a sua posição sobre a Ucrânia”.
De fato, a incerteza abrange praticamente todas as áreas em que a presidência dos Estados Unidos tem poder de ação, mas talvez o setor em que as consequências potenciais sejam mais perversas seja o da segurança nuclear. As dúvidas que decorrem da falta de uma postura política consistente afetam a estabilidade internacional e corroem a confiança dos aliados dos Estados Unidos na solidez dos laços firmados há anos. Para os nuclear hedgers – aqueles Estados que detêm condições técnicas e materiais para produzir um arsenal nuclear em um curto horizonte temporal – a falência dos compromissos estadunidenses para com a segurança coletiva pode ser um impulso rumo à proliferação.
Na Ásia, o Japão e a Coreia do Sul, dois países tecnicamente capazes de se tornarem potências nucleares, optam por não produzir seus próprios arsenais em troca da proteção oferecida pelos Estados Unidos. Se essa proteção falha, os dois países provavelmente enfrentarão pressões domésticas mais fortes para se armarem, principalmente diante dos avanços significativos da Coreia do Norte na produção de explosivos nucleares e de mísseis balísticos, e do aumento da militarização no Mar do Sul da China. Esse efeito provavelmente será sentido de forma mais intensa na Coreia do Sul, que possui grupos significativamente favoráveis à ideia de um arsenal sul-coreano. Mas mesmo no Japão, cuja população apresenta extrema resistência à proliferação nuclear (por motivos históricos evidentes), o aumento da insegurança pode ser suficiente para mudar a balança política doméstica, principalmente diante dos esforços recentes pelo governo de Shinzo Abe de revisão dos limites constitucionais impostos às forças militares japonesas.
Já na Europa, a Alemanha poderá ter incentivos similares para se tornar uma potência nuclear. Esse cenário de nuclearização alemã parece particularmente provável se o governo Trump desdenhar a importância da OTAN e oferecer concessões substanciais à Rússia no Leste Europeu, como uma forma de melhorar as relações bilaterais entre os dois países. Historicamente, um dos principais méritos da OTAN foi permitir que a Alemanha voltasse a crescer após a Segunda Guerra Mundial, sem que isso desestabilizasse o equilíbrio de poder na Europa. Portanto, o descaso que Trump demonstrou ao longo de sua campanha para com a aliança do Atlântico Norte pode levar o Estado alemão a buscar melhores formas de garantir unilateralmente sua segurança em um mundo cada vez mais hostil.
A inclusão da Alemanha, da Coreia do Sul e do Japão no clube nuclear divide a opinião de especialistas. Alguns acreditam que uma proliferação nuclear gradual seria benéfica para o mundo, reduzindo a ocorrência de guerras, já que o risco de um ataque nuclear seria suficiente para convencer os líderes políticos a não se engajarem em conflitos. No entanto, essa visão otimista se baseia no pressuposto de que os Estados se comportam de forma racional, o que nem sempre é fácil de se verificar. Afinal, racionalidade é contextual, e os Estados são formados por grupos, organizações e indivíduos, cujas racionalidades frequentemente não convergem. De fato, os últimos meses trouxeram uma miríade de especulações sobre a maior disposição de Trump de empregar armamentos nucleares em um conflito, em comparação com as administrações anteriores.
Além disso, a escalada não necessariamente ocorreria como um salto de um conflito convencional para o lançamento de um ataque nuclear massivo. Ela pode ocorrer de forma paulatina, com o emprego de um explosivo nuclear tático, cujo objetivo seria demonstrar a disposição de um Estado de utilizar todos os recursos disponíveis para alcançar seu intento, conforme previsto na doutrina militar russa, por exemplo.
Para colocarmos isso em perspectiva, explosivos nucleares táticos de, digamos, 0.02 kiloton – o equivalente a 20 toneladas de TNT – seriam o suficiente para causar um nível significativo de destruição em uma área que pode ser medida em metros quadrados. No outro extremo do espectro nuclear, a Bomba Tsar, maior explosivo já testado, teve sua intensidade estimada entre 50 e 70 megatons – ou milhões de toneladas de TNT –, o suficiente para causar um elevado nível de destruição em toda a região metropolitana de São Paulo, por exemplo.
Assim, na eventualidade de um conflito entre potências nucleares, um engajamento envolvendo explosivos convencionais poderia progredir para o uso de explosivos nucleares táticos, o que, por sua vez, poderia levar ao empego de explosivos nucleares estratégicos. E, quanto maior o número de potências nucleares no mundo, maior o risco de que tal escalada ocorra (além de um maior risco de falhas técnicas e humanas envolvendo esses explosivos).
Por isso é tão importante que os compromissos dos Estados Unidos frente aos seus aliados sejam resguardados. Qualquer recuo nesses compromissos pode ser o gatilho para um efeito dominó que levará a proliferação de armamentos nucleares a se acelerar nos próximos anos, com o consequente aumento do risco de que esses armamentos venham a ser empregados em uma guerra pela primeira vez desde 1945.
Diante de tanta incerteza, imbuídos ainda de esperança (a mais longeva das emoções), nos resta ansiar pelo sucesso da presidência de Trump: que as relações entre os Estados Unidos e a Rússia possam ser amenizadas, afastando o espectro da guerra nuclear; que os aliados estadunidenses possam ser tranquilizados, reduzindo o risco da proliferação; e que o presidente eleito, que surpreendeu o mundo tantas vezes nos últimos meses, nos reserve ao menos algumas surpresas agradáveis para os próximos quatro anos.
Raquel Gontijo é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Donald Trump. By: Gage Skidmore.