EUA e Europa após a eleição de Trump: rumando a caminhos divergentes?
No campo das relações exteriores, a eleição de Donald Trump causa apreensão devido ao questionamento explicitado pelo presidente eleito a consensos profundos e parcerias históricas que marcam a atuação internacional dos EUA. Nesse ínterim, insere-se sua posição sobre a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Essa instituição, fundada em 1949, no contexto de início da Guerra Fria, contava inicialmente com a participação dos EUA, do Canadá e de dez países da Europa Ocidental, e expandiu-se para o Leste Europeu após a queda do muro de Berlim. O princípio fundamental da organização é a garantia de defesa mútua. Pelo artigo 5 de seu Tratado, os países membros entendem que um ataque a um deles é um ataque a todos e terá como resposta a ação coletiva. Considerando a diferença de capacidades, especialmente a partir do alargamento da instituição, o Tratado significa um comprometimento dos EUA com a defesa de seus parceiros europeus. O artigo 5, no entanto, foi acionado uma única vez quando, após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA, os membros da OTAN lutaram ao lado do país norte-americano no Afeganistão.
O questionamento de Trump sobre a organização referia-se, principalmente, a uma questão orçamentária. O presidente eleito ressaltava que parte importante dos membros da OTAN não cumpre com a exigência acordada em 2014 de destinar ao menos dois por cento do Produto Interno Bruto para a defesa. Diante de tal cenário, Trump avaliava que a garantia de defesa mútua nos moldes atuais deveria ser repensada. Tal posicionamento marca um afastamento do discurso de defesa coletiva, que se constituiu como consenso mínimo entre democratas e republicanos na segunda metade do século XX.
Tal postura, mesmo que retórica, já é de ruptura. A orientação histórica dos EUA é de compromisso com a Europa no sentido da defesa mútua, construída com base na sempre frágil e trabalhosa promoção da confiança entre Estados soberanos e antigos inimigos. Portanto, o tema é bastante sensível. Os mecanismos de segurança coletiva firmados com a Europa, através da OTAN, e com o Japão, através de tratado bilateral, garantiram a aceitação da liderança dos Estados Unidos por parte daqueles que haviam sido derrotados na Segunda Guerra Mundial e mudaram o signo das relações transatlânticas. Embora a finalidade mais enfatizada para a criação da OTAN estivesse relacionada à contenção da União Soviética, a organização também refletia a importante desconfiança com relação à Alemanha e receios sobre o que a recuperação econômica da antiga potência rival poderia significar para a segurança internacional. Os mecanismos de segurança coletiva lograram que Alemanha e Japão se tornassem aliados importantes dos EUA em suas respectivas regiões, o que se mostrou bastante funcional ao interesse da potência mundial. As parcerias permitiram uma projeção dos EUA na Europa e na Ásia através da instalação de bases militares.
Considerando esse contexto, o ponto principal não se refere apenas a tentar prever qual será a postura adotada por Trump, mas ressaltar que sua retórica representa incerteza para a aliança atlântica e causa apreensão na Europa. A ministra da Defesa da Alemanha, Ursula von der Leyen, por exemplo, expressou preocupação com o resultado das eleições e pediu esclarecimentos sobre os posicionamentos de Trump. Os representantes dos dois principais líderes da União Europeia (UE), França e Alemanha, tiveram uma postura cautelosa diante da eleição de Trump. Tanto François Hollande como Angela Merkel se propuseram a trabalhar com os EUA, mas ressaltaram que a defesa dos valores e princípios ocidentais é a base da parceria. Já o presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker disse que a eleição pode colocar em risco as relações entre os EUA e a UE.
Embora sem lograr muitos avanços, a União Europeia desde muito busca consolidar sua Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), que garantiria maior cooperação militar e maior autonomia em relação aos EUA. O questionamento à OTAN proveniente do outro lado do Atlântico torna-se um elemento a mais para que os europeus busquem novas estratégias para a segurança regional. Os três países chaves no que se refere à cooperação nesse campo foram França, Inglaterra e Alemanha. Embora os dois primeiros tenham liderado a construção do mecanismo, nos últimos anos a Inglaterra esteve menos presente e a Alemanha tem aumentado sua participação.
Assim, o resultado do Brexit, que antecipa a saída da Inglaterra da União Europeia, é uma importante variável. Apesar de sua importância no que se refere a criação da PCSD, os ingleses exerceram poder de veto ao seu aprofundamento e haviam diminuído seu apoio em anos recentes. Os ingleses são parceiros especialmente próximos dos EUA e seu afastamento da UE contribui para a construção de uma estratégia europeia de defesa. É interessante ressaltar, nesse sentido, que o presidente da comissão europeia propôs em 2015 a construção de um exército europeu e encontrou resistências inglesas e apoio alemão. É possível esperar um aumento da liderança alemã no que se refere ao tema. No Livro Branco de 2014, a Alemanha apresenta um projeto para aumentar seu orçamento de defesa, valoriza a cooperação em tal temática e considera-se preparada para assumir maiores responsabilidades internacionais, em uma modificação da discrição alemã nessa temática.
Contudo, esse é apenas um lado da moeda. O fomento à cooperação nesse campo vai depender da existência de visão comum e capacidade de articulação entre França e Alemanha e da aceitação da liderança germânica pelos países do continente europeu. A questão da liderança alemã nesse campo e o aumento relativo de poder que o país tem vivenciado nos últimos anos são especialmente sensíveis e podem reavivar desconfianças históricas longamente adormecidas. Ademais, a União Europeia passa por importante crise econômica e de coesão, que leva ao próprio questionamento do projeto regional. Desde 2008, a crise financeira mundial levou a um enfraquecimento do euro e as políticas de austeridade fiscal defendidas pela organização e apoiadas pela Alemanha encontraram resistências em diversos governos e partidos, tanto à direita quanto à esquerda.
A eleição de Trump é vista como uma vitória pelos partidos nacionalistas e de direita europeus que tendem a se fortalecer com o novo cenário. Marine Le Pen, líder do partido de oposição francês Frente Nacional, comemorou fortemente a vitória de Trump, entendendo que aumentam suas chances nas próximas eleições francesas. Le Pen é eurocética e clama pela realização de um referendo sobre a saída da França da União Europeia. Seu discurso é marcado por uma ênfase no nacionalismo, na noção de "ter o país de volta" e em críticas ao organismo supranacional. Assim, sua vitória seria um baque para o bloco regional e as perspectivas de aprofundamento da cooperação em defesa europeia. Isso porque o fortalecimento dos grupos nacionalistas não é isolado ao caso francês, mas possui escala continental.
Portanto, os cenários futuros em muito dependem das escolhas a serem feitas pelos europeus, que terão que eleger entre maior integração ou um processo de fragmentação. Embora o momento atual seja marcado pela falta de coesão, é importante não apontar o enfraquecimento da organização como certo, tendo em vista que ao longo de sua história a integração regional na Europa aprofundou-se a partir das crises. Contudo, para uma reversão do processo de estagnação são necessárias modificações no bloco regional, que voltem a lograr consenso e apoio popular.
Por fim, embora ainda seja muito cedo para qualquer tipo de conclusão, a conjuntura atual permite visualizar um movimento de enfraquecimento da aliança ocidental transatlântica. É claro que o desenvolvimento nesse sentido depende de decisões que serão tomadas no futuro próximo, tanto pelos europeus quanto pelos EUA. É esperado que os analistas de segurança nacional tentem convencer Trump sobre os benefícios da aliança e que haja moderação de discurso por parte do presidente eleito. Do lado europeu, a iniciativa de busca de autonomia e coesão regional enfrenta sérios desafios, especialmente em razão do avanço do nacionalismo e da nem sempre bem aceita liderança alemã. É possível que a crise da aliança transatlântica seja apenas conjuntural e é importante evitar o fatalismo, já que, até os dias atuais, as recorrentes previsões de esfacelamento da organização falharam. Contudo, o questionamento de Trump aos benefícios trazidos pela OTAN aponta para uma nova reconfiguração da segurança internacional, na qual a firme aliança atlântica torna-se cada vez mais frágil.
Lívia Peres Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Donald Trump. By: Gage Skidmore.