Os elefantes dos eleitores norte-americanos, ou como as intuições morais afetam a política mundial
A palavra do ano de 2016, segundo o Dicionário Oxford, é “post-truth” (em tradução livre, “pós-verdade”), e adjetiva circunstâncias em que os apelos à emoção e convicções pessoais são mais importantes na formação da opinião pública que os fatos objetivos. Muito mais que uma marcação temporal, o prefixo “pós” é empregado quando o conceito (no caso, o que é verdade) se torna desimportante ou irrelevante. É curioso que “post-truth” tenha se tornado companheiro constante de política: vivemos o tempo da política pós-verdade.
A escolha dessa palavra é bastante oportuna em um ano que assistiu à eleição de Donald Trump para presidente nos Estados Unidos, ao Brexit, à rejeição do acordo de paz na Colômbia e – por que não? – ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Mas será mesmo que os argumentos racionais fundados em fatos objetivos perderam seu apelo persuasivo? Ou será que eles jamais tiveram o poder de convencimento atribuído a eles?
A hipótese de Jonathan Haidt, no livro The Righteous Mind, é que a primazia da razão (e de argumentos racionais e fatos objetivos) nas discussões políticas pode ter sido superestimada ao longo dos últimos séculos, e que existam outros processos cognitivos que necessitam urgentemente de atenção.
Muitas das discussões atualmente em pauta na política são profundamente moralizadas. Segundo Haidt, em julgamentos morais, o resultado é bem menos influenciado pela objetividade e pela razão do que normalmente se supõe. Na verdade, o julgamento moral compõe-se de dois tipos de cognição, explicada com a metáfora do elefante (que são as intuições) e seu montador (que são as racionalizações). A intuição é o que aparece primeiro, instantânea, automática, emotiva e ancorada em primeiras impressões – ela é o elefante. Já a racionalização é o processo controlado, lento, e custoso – é o montador.
O ser humano é uma espécie dentro do reino animal, o Homo sapiens. O elefante é uma metáfora para processos cognitivos que compartilhamos com muitos outros animais, ancorados em estruturas cerebrais que apareceram há 500 milhões de anos, responsáveis por respostas rápidas a ameaças e oportunidades. Já o montador é uma metáfora para a capacidade notadamente humana de se comunicar e racionalizar, habilidades manifestadas em um passado evolutivo muito mais recente, que não tiveram a capacidade de suplantar os processos automáticos. Diante de situações moralizadas, a primeira resposta é gerada por esses processos automáticos, intuitivos, fortemente influenciados por emoções e convicções pessoais, ou seja, a primeira resposta é dada inevitavelmente pelo elefante.
Entretanto, emoções são tradicionalmente vistas como elementos perturbantes, processos cognitivos de segunda categoria, que devem ser purgados pelo pensamento racional sempre que possível. Por essa razão, são frequentemente menosprezadas como desimportantes. Essa é a visão que precisa ser ultrapassada.
A natureza humana é não apenas moral, mas moralista, crítica, com vocação para censora e justiceira. O moralismo não é um subproduto, ou um bug que se infiltrou em nossa psicologia destinada a ser objetiva e racional. Muito ao contrário, essa predisposição moral (ou moralizante) é algo que nos permitiu constituir grandes grupos cooperativos, tribos e nações que não compartilham laços de sangue. É essa moralidade compartilhada que promove nossas pautas sociais, que permite a justificação de nossas ações e a defesa dos grupos dos quais participamos. Ela é fortemente conduzida pelos elefantes emocionais e intuitivos que todos nós temos, e que está sendo ignorada por aqueles que defendem pautas progressistas, oferecendo apenas argumentos racionais.
Mas talvez a lição esteja sendo aprendida.
Em pronunciamento feito em visita à Grécia em 15/11/2016, o presidente norte-americano Barack Obama abordou a vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais de 2016. Obama reconheceu a existência de sentimentos de raiva e frustração na população norte-americana. Ele mencionou que os EUA enfrentavam uma grave crise financeira quando assumiu seu mandato quase 8 anos atrás, e que várias medidas adotadas pelo seu governo podem ter feito com que parte da população se sentisse amedrontada, irritada ou preocupada com o fato de que a economia não estava tão segura quanto deveria.
Esses medos acabam misturados em questões de identidade étnica, religiosa ou cultural. Obama reconheceu que Trump soube canalizar esses medos e frustrações, a desconfiança em relação à globalização e às elites e instituições governamentais, que não necessariamente são sensíveis aos anseios fundamentais das pessoas – ou pelo menos é como elas se sentem. A palavra fundamental aqui parece ser exatamente sentir.
São exatamente as emoções que governam os elefantes das intuições morais. O montador não consegue mudar o curso do elefante facilmente. Uma tarefa para a qual o montador é extremamente hábil é a elaboração de explicações posteriores para o que quer que o elefante já fez e de justificativas para o que o elefante já quer fazer, ou seja, racionalizações post hoc. O elefante é um personagem central da política pós-verdade, já que no mundo complexo, é mais difícil identificar fatos objetivos fidedignos. Mais ainda, o elefante procura fatos objetivos que corroborem suas posições de saída, e permanece cético em relação aos fatos que perturbem suas convicções.
Todavia, não deve haver ilusão: tanto os eleitores de Donald Trump quanto os eleitores de Hillary Clinton votaram conduzidos por seus elefantes, guiados por seus próprios valores, surdos aos argumentos fáticos e objetivos trazidos pelo outro lado, muitas vezes insatisfeitos com as pessoas que seus partidos escolheram para representá-los, mas extremamente temerosos e desconfiados em relação ao projeto alternativo.
Trump percebeu medos presentes na sociedade norte-americana no momento, e soube dar respostas a pessoas que se sentiam esquecidas. Enquanto outros projetos de poder não abordarem esses anseios, não considerarem essas pessoas como dignas de serem ouvidas, veremos novos projetos conservadores aparecendo nas urnas. Prova disso é a ascensão da candidata da extrema-direita Marine Le Pen nas intenções de voto para as eleições presidenciais francesas que ocorrerão daqui cinco meses.
Todos nós somos guiados pelos nossos elefantes. A questão aqui é que o país mais poderoso elegeu democraticamente para seu comando um homem cujo elefante, pelo menos à primeira vista, é vaidoso e explosivo – e que comandará o maior arsenal bélico do mundo.
Mesmo estando na época da política pós-verdade, não parece adequado ignorar o fato objetivo de que existe uma tendência de crescimento de projetos conservadores. Os elefantes progressistas devem se atentar para isso, e não podem mais legitimamente encarar vitórias conservadoras com surpresa ou perplexidade, se optam por permanecerem cegos e surdos.
Thaís de Bessa Gontijo de Oliveira é doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e membro do GENe - Grupo de Estudos em Neuroética e Neurodireito.
Imagem: Republican Elephant Icon. By: DonkeyHotey.