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Donald Trump e a segurança nacional: o que esperar de uma “América grande outra vez”?


Após mais de uma semana desde a vitória do Republicano Donald Trump no colégio eleitoral estadunidense, as eleições presidenciais continuam a polarizar opiniões. Observados, inicialmente, sob lentes de incredulidade e euforia coletiva, os resultados passam agora a ser encarados com crescente expectativa sobre “o que virá a seguir” na política doméstica do país e quais serão os impactos da transição presidencial no que tange ao modo através do qual os Estados Unidos se relacionam com o mundo. Embora o momento ainda pareça precipitado para a elaboração de previsões a esse respeito, a análise dos possíveis rumos adotados pelo novo presidente no campo da segurança nacional e da defesa pode oferecer pistas importantes, considerando a relação histórica existente entre o pilar da projeção militar e a política externa norte-americana.


Apesar do teor polêmico e espetacularizado da corrida eleitoral, tanto Trump, quanto a candidata do Partido Democrata, Hillary Clinton, demonstraram intenções de reformular e modernizar o aparato de defesa estadunidense, desgastado pelos efeitos das intervenções militares lançadas em nome da “Guerra Global ao Terror” e por cortes orçamentários resultantes da crise financeira de 2008. As divergências se acentuavam, entretanto, quando o assunto era a aplicação internacional da máquina de guerra: enquanto Clinton se mostrava favorável à intensificação e continuidade do engajamento observado na Era Obama (2009-2016), Trump optou por condutas mais pendentes ao isolacionismo, criticando veementemente as operações militares no Oriente Médio e alianças como a OTAN que, segundo o magnata, vinha sendo comprometida por free-riders europeus, que não cumpriam com suas responsabilidades e transferiam o ônus da segurança transatlântica aos Estados Unidos.


Tendo como base os motes “peace through strenght” e “America first”, as propostas de segurança nacional e defesa elaboradas pela assessoria do presidente recém-eleito se alicerçam na percepção de que a recuperação da grandeza da nação estadunidense se sustenta em dois pilares, quais sejam, a manutenção de uma economia robusta e o fortalecimento dos instrumentos de proteção do território do país. Nesse último quesito, a “agenda Trump” pode ser sumarizada em três objetivos: 1) a retirada das limitações orçamentárias impostas ao setor de defesa pelo governo Obama; 2) o aumento das tropas e efetivos militares, bem como a modernização das forças armadas; 3) a priorização da segurança nacional, em detrimento de engajamentos militares em territórios distantes.


Os dois primeiros pontos, mencionados intensamente por Trump em todos os debates eleitorais, representam uma reação aos efeitos do Budget Control Act (BCA) de 2011, aprovado em um raro momento de convergência bipartidária no Senado e na Casa dos Representantes, cujo texto previa o estabelecimento de tetos orçamentários para os gastos públicos, por um período de dez anos. Naquela ocasião, a administração Obama adotou a medida de contenção de gastos em resposta à crise de 2008. Segundo estudos elaborados pelo Center for Strategic and International Studies (CSIS), a nova legislação no setor de defesa, em complementariedade à lei preexistente sobre o tema (Gramm Rudman Hollings, aprovada em 1985), poderia provocar cortes de até $ 1 trilhão, no longo prazo. Ainda que, na prática, as consequências da medida legislativa tenham sido amortecidas por apropriações orçamentárias suplementares efetuadas pelo Executivo, a redução dos investimentos em defesa surtiu efeitos no tamanho das forças armadas, principalmente do exército. Vale ressaltar que, no governo Obama, o exército foi o serviço que apresentou a maior queda, atingindo um efetivo de 450.000 homens (esse último correspondia a um total de 482.000, em 2001, e 782.000, no fim da Guerra Fria).


Em contraposição, as plataformas eleitorais e o recém publicado projeto de “100 dias de governo” de Donald Trump estipulam acréscimos a todas às forças, os quais, se concretizados, promoveriam uma elevação de $93 bilhões por ano nos gastos em defesa acima do limite do BCA, segundo os cálculos efetuados pelo CSIS, com base nas promessas de campanha Republicanas. Para efeito de comparação, o montante representaria um aumento de $60 bilhões anuais, em relação ao que é gasto atualmente pela presidência Obama. No campo prático, todavia, falar é mais fácil que fazer. Mesmo favorecido por um Congresso de maioria Republicana, a proposta de incremento da defesa certamente enfrentará limitações, advindas da ala Democrata, que, apesar de favorável ao investimento nesse setor, milita para que o mesmo seja feito em relação às outras áreas domésticas, algo que vai de encontro às concepções trumpistas acerca da necessidade de enxugamento da máquina pública. Da mesma forma, a oposição poderia emergir do próprio Partido Republicano, cuja aceitação em relação a Trump e às propostas de elevação do teto da dívida em caso de rejeição do BCA, não é homogênea.


O último tópico, referente à priorização da segurança nacional, surge como um dos princípios mais controversos dessa agenda. Durante o processo eleitoral, o candidato condenou Democratas e Republicanos pelos resultados desastrosos das intervenções no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003). Como mencionado anteriormente, também lançou questionamentos à participação norte-americana na aliança transatlântica, propagando a ideia – já verbalizada por alguns de seus apoiadores e conselheiros, como o general aposentado do setor de inteligência, Michael Flynn – de que os Estados Unidos deveriam lidar “com seus próprios problemas”, ao invés de se envolver em conflitos internacionais alheios, ou em “esforços moralizantes de exportação da democracia”. De acordo com um levantamento realizado em maio de 2016 pelo Pew Research Center, essa visão reflete a percepção de 57% da opinião pública do país. Em contrapartida, o mesmo estudo revela um crescimento do número de entrevistados favorável ao aumento dos gastos em defesa (de 13 para 35%, entre 2013 e 2016), dos quais 80% consideram o Estado Islâmico (EI) como a principal ameaça global atual. Isso também se faz consonante com a percepção de ameaças demonstrada por Trump que, a despeito da oposição ao engajamento militar internacional, prometia máxima rigidez no combate ao EI no Iraque e na Síria, bem como a cooperação com a Rússia de Vladimir Putin. A distorção, nesse sentido, é que além de oscilar entre o suposto isolacionismo e a continuidade de utilização da força militar no combate ao terrorismo, por exemplo, os objetivos de defesa e política externa elencados por Donald Trump se encontram descompassados.


Em outras palavras, se o propósito do Republicano recém-eleito é a rejeição às intervenções e alianças internacionais, como interpretar e justificar as propostas faraônicas de modernização do aparato de defesa e segurança nacional? A análise da conjuntura estadunidense parece oferecer duas explicações que se conjugam e se complementam. A primeira delas é que o “isolacionismo norte-americano” é menos uma realidade e mais um artifício retórico, reciclado por Trump ao construir sua auto-imagem de outsider e opositor do establishment político existente. O argumento do isolamento é contestável, sobretudo, se considerarmos a constante presença histórica estadunidense na América Latina, por exemplo. O que se verifica, na realidade, é uma alternância de formas de engajamento que vão do unilateralismo ao multilateralismo matizados, em determinados contextos, pela rejeição às alianças permanentes que, embora frequentemente confundida com uma espécie de isolacionismo, não corresponde a esse último. Ademais, o princípio de preservação da liderança, aparentemente não questionado por Trump, dificilmente se sustentaria às custas de uma postura efetivamente isolacionista.


A outra questão é que a demanda por modernização e reforma do aparato de defesa estadunidense também se fundamenta nas múltiplas funções assumidas por esse último, sobretudo em décadas mais recentes. No fim dos anos 1990, o encerramento da Guerra Fria e o desmantelamento do inimigo externo soviético colocaram em dúvida o propósito existencial das forças armadas e da extensa burocracia de defesa, estruturada desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a partir da assinatura do National Security Act de1947. Em um primeiro momento, esse processo culminou, por exemplo, em um aumento do emprego dos recursos do Departamento de Defesa em missões de cunho humanitário, cuja atribuição pertencia, inicialmente, aos organismos civis e ao Departamento de Estado. Assim, a própria concepção de segurança nacional e defesa passa por ajustes, a fim de incorporar o aríete da “segurança humanitária”. Nesse contexto, os atentados às Torres Gêmeas, em setembro de 2001, contribuem para acrescentar mais uma dimensão ao emprego das forças armadas, qual seja, a do policiamento doméstico.


Embora esse último não figure, necessariamente, como uma novidade do 11 de setembro, é após os ataques que a segurança doméstica alcança um status prioritário na agenda de segurança nacional. No âmbito concreto, isso é atestado pela criação, em 2002, do Departamento de Segurança Doméstica e do Northern Command (“Comando do Norte”), a primeira divisão militar destinada ao patrulhamento da América do Norte. Outro ponto a ser ressaltado é que o governo Bush filho (2000-2008) flexibilizou as normas para o posicionamento de efetivos militares em solo americano, em nome da proteção da “segurança nacional”. Enquanto isso, departamentos incumbidos, originalmente, do policiamento doméstico, como o Departamento de Polícia de Nova Iorque, estabelecem braços de atuação extra fronteiriços, legitimados pela necessidade de vigilância imputada pelo combate ao terrorismo. Em suma, o que se verifica, cada vez mais, é não só a ampliação das funções militares e policiais, mas igualmente a sobreposição dessas últimas.


Diante do cenário de afloramento dos conflitos e da polarização da sociedade estadunidense, evidenciados no período eleitoral e pelo crescimento do movimento de rejeição a Trump (organizado sob a bandeira do “Not my president”), tais dinâmicas se tornam ainda mais alarmantes e demonstram que, em muitos sentidos, o histórico embate entre segurança nacional e liberdades civis, presente desde a formação constitucional do país, não está solucionado. Pelo contrário, sua complexidade só faz aumentar, conforme os meios doméstico e internacional se tornam mais multifacetados e heterogêneos. Resta saber se a resposta da presidência Trump a esses fenômenos, acobertada pelo mito do isolacionismo, será de fato tão agressiva e danosa quanto suas promessas de campanha fazem supor.


Clarissa Nascimento Forner é mestranda em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.


Imagem: Donald Trump. By: Gage Skidmore.

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