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A guerra ao terror e o Brasil: impactos do paradigma de segurança internacional em um país periféric



Os conceitos de segurança e liberdade têm uma relação ambígua e por vezes não complementar. Apesar do exercício da liberdade civil depender da existência de um ambiente seguro, Thomas Hobbes já apontava que a criação do Estado significou uma renúncia a liberdade natural em troca de garantia de sobrevivência. No período mais recente, através da noção de “securitização”, Barry Buzan e Ole Waever buscaram mostrar como o discurso de “ameaça existencial” legitima a adoção de medidas extremas que violam as regras estabelecidas. Portanto, a securitização pode ter um impacto para a democracia e para o estado de direito cuja face mais evidente refere-se à criação de uma cultura de segredo.


Essa lógica ilumina de forma interessante o contexto de segurança internacional contemporâneo, marcado desde 2001 pela “guerra global ao terror” liderada pelos Estados Unidos. Nesse país, desde o ataque às Torres Gêmeas, o combate ao terrorismo foi acompanhado pela adoção de disposições que iam de encontro à garantia das liberdades civis e do direito à privacidade. A adoção do USA Patriot Act, em 2001, permitia a interceptação telefônica e de e-mail daqueles supostamente envolvidos com o terrorismo e o monitoramento de “lobos solitários”. Anos depois, em 2013, Edward Snowden, ex-analista da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA, denunciou que o Ato Patriótico abriu uma brecha para que o Estado monitorasse a própria população de forma indiscriminada. A polêmica ganhou mais força com a existência de análises que questionavam a eficácia da medida na prevenção ao terrorismo. Em 2015, o ato patriótico foi substituído pelo Freedom Act, modificando a passagem que havia permitido a interceptação telefônica sem mandado judicial. Contudo, na visão de alguns senadores como Bernie Sanders, as mudanças na legislação não foram suficientes e ainda há brechas para a espionagem doméstica.


Além do âmbito nacional, os EUA também buscaram expandir o paradigma de luta contra o terrorismo a outras regiões do mundo. Embora a América do Sul esteja longe do cenário principal da guerra ao terror e não seja uma prioridade, o país do norte demandava a contribuição dos países da região no “esforço de guerra” e a adoção de legislação própria para lidar com a ameaça terrorista. No Cone-Sul, o discurso estadunidense enfatizava o risco de que a Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai tornasse um ponto de financiamento ao terrorismo.


O Brasil possuía uma postura ambígua com relação a esse tema, cooperando com os EUA, recebendo treinamento técnico, mas resistindo a adoção de legislação própria. Relatórios do Departamento de Estado, que haviam sido classificados e foram divulgados pelo Wikileaks (disponíveis aqui e aqui), apontam que o Brasil cooperava com os EUA, mas existiam importantes focos de divergência. O Brasil, por exemplo, não classifica como terroristas organizações armadas como o Hezbollah ou as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). A falta de legislação específica também era apresentada como um problema para a adoção de medidas de contra-terrorismo. Referindo-se aos atores domésticos, os relatório apontam que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e a Polícia Federal eram mais cooperativos, enquanto o Itamaraty e a Presidência possuíam uma visão mais reticente à adoção de legislação anti-terrorismo e à cooperação com os Estados Unidos. Os relatórios de 2015 do escritório anti-terrorismo do Departamento de Estado, disponíveis em sua página oficial, apontam que o Brasil é um país cooperativo. Contudo, no que se refere à temática de legislação apontam que a Lei de Segurança Nacional de 1980 não definia terrorismo, dificultando a acusação e investigação, e que o problema poderia ser revertido pelo projeto de lei antiterrorismo que estava sendo debatido no Congresso.


Portanto, a Lei Antiterrorismo adotada em março de 2016 (nº 13.260/2016) significou uma aproximação do Brasil às expectativas dos EUA e – de certa forma – o país entrou na “guerra ao terror” adaptando-se ao paradigma de segurança internacional contemporâneo. A adoção da lei teve como fator principal a preocupação de que os Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro em agosto de 2016 fossem alvo de um atentado. A legislação foi questionada por organizações como a Anistia Internacional, que viam em sua adoção a possibilidade de criminalização dos movimentos sociais e uso desproporcional da força pelo Estado. Embora as passagens mais polêmicas do projeto inicial de lei tenham sido vetadas, o histórico do Estado brasileiro e o legado autoritário da ditadura militar mostram que a preocupação com o risco de criminalização e uso desproporcional da força tem fundamento.


A lei antiterrorismo foi utilizada pela primeira vez durante os Jogos Olímpicos, no âmbito da Operação Hashtag lançada pela Polícia Federal. Na ocasião foram presos 14 suspeitos de ligação com o Estado Islâmico. Contudo, as evidências para as prisões temporárias eram frágeis: baseavam-se no “batismo” online dos suspeitos pelo Estado Islâmico, na tentativa – não concretizada - de compras de armas por meio da internet e não na existência de medidas concretas de planejamento para atos terroristas. Em outras palavras, os supostos terroristas claramente eram amadores e qualificá-los como ameaça a “segurança nacional” seria um tanto quanto exagerado. A repressão anterior a própria consecução de crimes não é compatível com o Estado de direito e o discurso de ameaça apenas contribui para criar um contexto de medo e urgência. A narrativa de que se estava lidando com uma “célula terrorista” no país e não com amadores tornou a operação ainda mais problemática. Nesse contexto, é importante lembrar que a violação dos direitos humanos durante a ditadura militar ocorreu também a partir do medo e da alegação de que um “inimigo interno” com conexões externas era uma ameaça a “segurança nacional”.


Apesar de se tratar de um momento específico, o argumento de que o aprendizado adquirido no período pode contribuir para o aprimoramento das técnicas das forças de segurança parece ganhar espaço. Contudo, tal movimento contém um importante risco: a militarização das respostas, o enquadramento de movimentos sociais como terroristas e o monitoramento da população sob o argumento de combate ao terrorismo. A discussão contribui também para o empoderamento da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), que após o afastamento da presidente Dilma Rousseff passou ao controle militar. A presidente afastada havia emitido decreto em 2015 que extinguia o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e passava a ABIN ao controle civil. Contudo, o GSI foi restituído pelo presidente interino Michel Temer, a ABIN foi subordinada ao órgão, e o General Sergio Westphalen Etchegoyen foi nomeado como ministro.


Por fim, tendo em vista o contexto nacional e o exemplo dos Estados Unidos, os riscos de criminalização e de enfraquecimento do Estado de direito são bastante plausíveis. Por outro lado, a adoção da lei antiterrorismo pouco condiz com a realidade nacional, já que o Estado Islâmico e os grupos jihadistas têm os Estados Unidos e a Europa como alvos principais para ataques. Assim, mais uma vez o Brasil – a partir de decisão própria –incorpora uma legislação proveniente de países centrais e aceita a hegemonia dos Estados Unidos.


Livia Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.


Imagem: Segurança na Olimpíada em Brasília será feita por 8,5 mil profissionais. Por: Agência Brasília.

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