Por que a continência no pódio?
Nos jogos olímpicos realizados no Rio de Janeiro, neste mês de agosto, chama a atenção o comportamento dos atletas brasileiros na cerimônia de premiação. Muitos deles prestam continência, uma saudação militar, no momento de execução do Hino Nacional e hasteamento da bandeira. O gesto não é uma novidade, pois durante a realização dos jogos pan-americanos de Toronto, no Canadá, em 2015, a saudação militar foi recorrente entre os atletas brasileiros que chegaram ao pódio. Naquela ocasião, tal comportamento gerou polêmica, implicando em intenso debate na mídia e em redes sociais devido, em grande medida, ao cenário político conturbado. Mas, enfim, trata-se de uma questão política para gerar propaganda para as Forças Armadas ou é apenas um sinal de respeito à bandeira nacional, previsto no regulamento militar?
A continência é um cumprimento militar e deve ser feita em pé com a movimentação da mão direita até a cabeça, com a palma da mão para baixo, podendo ser individual ou de tropa. De acordo com o regulamento militar, é uma forma de demonstrar respeito a superiores, pares, subordinados, e aos símbolos nacionais, isto é, a bandeira e o hino. O gesto, reiterado no pódio, é justificado devido ao fato de alguns atletas brasileiros participarem do Programa de Atleta de Alto Rendimento (PAAR) que estimula o ingresso nas Forças Armadas em troca de incentivos para a prática desportiva.
O PAAR, criado em 2008, é fruto de uma parceria entre o Ministério da Defesa e o Ministério do Esporte e, inicialmente, teve como objetivo melhorar a participação brasileira nos Jogos Mundiais Militares disputados no Rio de Janeiro em 2011. A parceria estendeu-se para a Olimpíada de Londres em 2012 e atualmente 670 militares fazem parte do programa, sendo que 76 são militares de carreira e os outros 594 temporários, dos quais 145 disputaram a Olimpíada do Rio.
O ingresso de atletas nas Forças Armadas é realizado mediante um edital público e prova de títulos. Os atletas selecionados frequentam um treinamento básico e ingressam na condição de militares temporários, ocupando cargos variados com diretos salariais iguais aos demais militares de graduação similares, mas podem continuar treinando e competindo conforme as necessidades de suas modalidades. Além disso, os atletas podem utilizar a estrutura de treinamento das Forças Armadas e recebem ainda atendimento médico, odontológico, fisioterápico, alimentação e alojamento. Em contrapartida, participam dos Jogos Militares e demais competições esportivas.
Programas semelhantes também são realizados em países como França, Itália, Rússia e China, com resultados significativos, e serviram de inspiração para a iniciativa brasileira. Os atletas não são militares de carreira, nem tampouco obrigados a prestarem continência, mas são ensinados a fazê-lo sempre que o Hino Nacional é tocado e a bandeira brasileira hasteada. O Comitê Olímpico Internacional proíbe quaisquer manifestações políticas, comerciais ou religiosas durante a cerimônia de premiação, mas não vê problema na continência, pois interpreta como um gesto de reverência aos símbolos nacionais.
Embora interpretado como um gesto de patriotismo, sem qualquer conotação política, o protagonismo das Forças Armadas no esporte demonstra uma deficiência que o Brasil tem para desenvolver e manter atletas de alto rendimento. A parceria entre os Ministérios do Esporte e da Defesa possibilita aos atletas acesso a uma estrutura de treinamentos na qual o Brasil carece de investimentos. Em contrapartida, as Forças Armadas ganham prestígio e visibilidade, uma vez que o ato de prestar continência representa os valores característicos dos militares, passados aos atletas no período de treinamento.
De fato, a saudação militar não tem conotação política, mas por trás do patriotismo, a continência demonstra um aceno ao patrocínio proporcionado pela Marinha, o Exército e a Força Aérea ao esporte, possibilitando uma oportunidade para as Forças Armadas aumentarem sua projeção e integração com a sociedade. Antes das Olimpíadas, as Forças Armadas enviaram às redações de diversos periódicos e portais brasileiros informações sobre cada atleta militar e cada vitória é celebrada nas redes sociais das instituições.
As Forças Armadas, contudo, já gozam de elevado conceito na sociedade, sendo uma das instituições em que os brasileiros mais confiam. Isto demonstra que a associação entre as corporações e o regime militar (1964-1985) está cada vez mais remota na memória dos brasileiros, na mesma medida em que as instituições democráticas se consolidam. Assim cabe perguntar, por que ainda a necessidade de projeção positiva junto à sociedade?
A destinação precípua dos militares, em um contexto democrático, é se preparar para a guerra, isto é, realizar a defesa, independente de a possibilidade de um conflito seja remota ou não. Entretanto, o apoio ao esporte de alto rendimento é uma das várias atividades das Forças Armadas que não se relacionam com a defesa nacional. Ocorre que, em um país que vive em paz com os vizinhos e não enfrenta ameaças militares significativas, a sociedade tem dificuldade para identificar o motivo pelo qual sustentar e manter as Forças Armadas. Assim, apoiar o esporte, área que traz visibilidade nacional, é uma estratégia de projeção positiva e um meio de alocar recursos para manutenção de centros de treinamentos militares.
Se por um lado o PAAR tem trazidos bons resultados para a campanha brasileira em competições internacionais, melhorando o desempenho dos atletas brasileiros, por outro, a discussão levantada em torno da referência aos valores militares propagados por tais atletas no pódio demonstra que o debate sobre a função das Forças Armadas ainda não é satisfatório. Ademais, a controvérsia revela que, apesar de os brasileiros conferirem aos militares elevada confiança, ainda permanecem vivos resquícios de um passado não muito distante e carente de maiores diálogos entre as Forças Armadas e sociedade brasileira.
Iniciativas de interação positiva com ganhos sociais, tais como o apoio ao esporte nacional é uma significativa contribuição, porém, por si só, não justificam a propagação de valores militares, nem tampouco possibilita a compreensão da destinação das Forças Armadas pela sociedade brasileira. Importantes também são iniciativas de diálogo e reflexões acerca da defesa nacional e da função constitucional das Forças Armadas na democracia.
Camila Ribeiro Luis é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP).
Imagem: Martine Grael e Kahena Kunze ganham regata final e levam ouro olímpico. By: Agência Brasil Fotografias.