Pelo ingresso no clube nuclear: a candidatura indiana ao NSG
A reunião de junho do Grupo de Fornecedores Nucleares (em inglês, Nuclear Suppliers Group, NSG) trouxe um tópico particularmente polêmico à mesa de negociações: a solicitação da Índia para tornar-se membro do clube.
O NSG, criado em 1974, é um organismo internacional que promove a coordenação, entre seus membros, de suas políticas de exportação de materiais e tecnologias relevantes para atividades do setor nuclear. Ele compõe um dos pilares do regime de não-proliferação, pretendendo evitar que países suspeitos de ambições atômicas indevidas tenham acesso aos materiais e tecnologias necessários para a produção da bomba. Atualmente, o NSG possui 48 membros, incluindo o Brasil.
Para a Índia, integrar o NSG poderia ser um passo fundamental para que o país seja reconhecido como uma potência nuclear “legítima”. Isso porque, segundo os termos do Tratado de Não-Proliferação (TNP), de 1968 – que é a coluna cervical do regime internacional de controle da proliferação – apenas os Estados que tivessem realizado testes nucleares até 1967 – nomeadamente, os Estados Unidos, a Rússia, o Reino Unido, a França e a China – poderiam ser reconhecidos como potências nucleares, e todos os demais deveriam renunciar à produção da bomba. Por consequência, a Índia, que se tornou uma potência nuclear em 1998, o fez em desrespeito aos termos do TNP, do qual, de qualquer forma, não é signatária.
Sob uma interpretação positiva, ao mesmo tempo em que a inclusão da Índia no NSG poderia legitimar seu status nuclear, essa decisão poderia representar um avanço para o próprio regime de não-proliferação, já que ela formalizaria o compromisso indiano com o controle de transferência de tecnologias e materiais nucleares. Dessa forma, ainda que o grupo não estabeleça nenhum tipo de penalidade para países que desrespeitem as normas acordadas, o compromisso em si já seria um trunfo para o futuro da não-proliferação. Com efeito, a candidatura indiana é fortemente apoiada pelos Estados Unidos, que ressaltam o bom histórico do país em termos de sua postura nuclear, e que firmaram um acordo para a construção de seis reatores nucleares no país.
No entanto, essa visão otimista sobre a inclusão da Índia no NSG tem uma forte contrapartida. O reconhecimento da Índia como uma potência nuclear e sua admissão no clube de fornecedores poderia encorajar outros países a seguirem seus passos. De fato, o Paquistão, que também possui um arsenal nuclear e tampouco é signatário do TNP, já manifestou seu interesse em aderir ao NSG. Se o precedente for concedido à Índia, porque a mesma cortesia não deveria ser também estendida ao Paquistão, que pode, sem dúvida, ser classificado como um fornecedor de materiais e tecnologias nucleares? E, se tanto a Índia quanto o Paquistão forem aceitos no clube, por que não outros países? Isso poderia estimular novos Estados a investirem no desenvolvimento nuclear, já que a perspectiva de reconhecimento e aceitação internacional se tornaria possível. Além disso, o ingresso da Índia no grupo poderia facilitar seu acesso a tecnologias e materiais fornecidos por outros países, o que liberaria seus recursos domésticos para serem concentrados em seu programa nuclear militar. Por fim, seria uma ironia histórica a inclusão da Índia no NSG, já que a criação deste foi, ao menos em parte, motivada pelos avanços indianos no setor nuclear: a realização de uma “explosão nuclear pacífica” pela Índia, em 1974, a qual foi viabilizada pela parceria estabelecida com o Canadá, alertou os países detentores da tecnologia para o risco de que outros Estados viessem a se beneficiar do fornecimento externo para produzir a bomba.
Não parece, contudo, que foram essas ressalvas que motivaram a postura da China nas negociações da última reunião do NSG, em que o governo chinês se opôs ao ingresso indiano no grupo; ao contrário, há fortes indícios, de que sua postura foi instigada por considerações mais fortemente relacionadas com a geopolítica asiática. Assim, a percepção de que o ingresso da Índia no grupo poderia gerar um desequilíbrio nuclear na região impeliu a China a recomendar que a consideração das candidaturas indiana e paquistanesa fossem feitas de forma simultânea.
Além disso, o governo chinês se recusou a aprovar a entrada da Índia no grupo sem que esta adira ao TNP, considerando essa a condição sine qua non para que um país possa ser membro do grupo de fornecedores nucleares. Mas os termos para a assinatura indiana do TNP ainda precisam ser esclarecidos: o país passaria a ser a sexta potência nuclear reconhecida pelo Tratado, ou ele teria que eliminar seu arsenal como condição para sua adesão? A segunda opção parece ser inaceitável para a Índia, enquanto a primeira pode promover intenso desagrado em muitos dos quase 200 membros do TNP, que poderiam interpretar nessa negociação um grande demérito de seu próprio compromisso com a não-proliferação.
Para o Paquistão, a entrada da Índia no grupo seria, provavelmente, um sério incômodo, já que sua própria candidatura seria ainda mais dificultada pela necessidade de consenso na inclusão de novos membros, consenso esse que passaria a incluir seu antagonista regional. Não que as chances de ingresso paquistanês no NSG sejam boas atualmente. O país tem um histórico ruim no setor nuclear, incluindo a infame rede ilegal de venda de tecnologia nuclear coordenada por A.Q. Khan, que negociou a transferência de equipamentos, por exemplo, para a Líbia, e cujas ações foram expostas em 2003. O país é, ainda, suspeito de vender materiais e tecnologias nucleares para a Coreia do Norte, um dos principais transtornos para a atual política internacional de não-proliferação.
Finalmente, para a própria Índia, o significado dessa empreitada é dúbio. Enquanto alguns veem na oposição chinesa um grande golpe para a diplomacia de Narendra Modi, atual primeiro ministro indiano, outros interpretam sua tentativa como uma vitória em si, ao estabelecer uma oposição incomum à China. De uma forma ou de outra, o ingresso indiano no grupo foi, ao menos, adiado, já que a reunião dos membros do NSG, concluída no dia 24 de junho, não chegou a uma decisão sobre o assunto. Essa inconclusão traduz a necessidade de reflexões e debates prolongados sobre o que a admissão da Índia representaria para o futuro da não-proliferação, para os quais não há uma resposta simples.
Raquel Gontijo é doutoranda em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Atomic Power Station. By: Janusz Dymidziuk.