As Forças Armadas, a mídia e a crise política: reflexões sobre um processo em curso
No dia 16 de maio, em seu primeiro discurso como ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou que as Forças Armadas foram impecáveis durante a crise política que levou ao afastamento da presidente Dilma Rousseff, dando mostras de respeito à Constituição e às demais instituições nacionais. De acordo com o ministro indicado pelo presidente interino Michel Temer, esse fato mostra que “o ‘Poder Moderador’ que residia no Imperador [...] e que se queria incorporado durante a República Velha às Forças Armadas, e mesmo dentro do atual século, cessou de existir, mesmo em sua forma extra-constitucional”. Assim, de acordo com o ministro, as intervenções militares na política nacional seriam um passado para o Brasil.
O respeito das Forças Armadas à Constituição mostra-se como um fator a ser exaltado, principalmente em um momento em que frações da população clamaram por intervenção militar. Contudo, apesar das falas do ministro e embora as Forças Armadas não tenham ocupado o papel de protagonistas no processo de impeachment, ainda é cedo para se chegar a alguma conclusão, principalmente porque a crise política não acabou: Dilma Rousseff não foi afastada definitivamente e o governo de Michel Temer tem se mostrado fraco, com a queda de dois ministros em menos de um mês em razão de questões vinculadas a corrupção.
Além disso, embora as Forças Armadas não apareçam como protagonistas na crise política que acomete o Brasil, as últimas notícias indicam que as mesmas tiveram uma atuação discreta, ao menos para garantir a continuidade de sua autonomia institucional. É o que indica a volta do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que havia sido extinto por Rousseff e que foi novamente estabelecido por Temer, em um momento em que a orientação geral era de corte de ministérios. Ademais, de acordo com a Folha de S. Paulo, o então vice-presidente Michel Temer teria desistido de indicar Newton Lima, deputado do PMDB, como ministro da Defesa, em decorrência de reação negativa das Forças Armadas. De acordo com nota do Estado de S. Paulo, o comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas vetou a indicação. Esses acontecimentos mostram que as Forças Armadas ainda têm significativo poder de influência e veto em questões políticas, ao menos em sua área de atuação. O Ministério da Defesa ainda é fraco e o governo tem dificuldade de atuar a partir da instituição.
Além disso, em gravações de telefonemas divulgadas pela mídia entre Romero Jucá, ex-ministro do Planejamento, e Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, o primeiro afirmou que estava em contato com generais e que em caso de impeachment estes “garantiriam” e que os militares estariam monitorando o Movimento dos Sem-Terra. Em entrevista ao jornal o Estado de S Paulo, Jungmann negou que a questão fosse relevante. Segundo o ministro, é natural que as Forças Armadas “monitorem” a conjuntura política e social, embora “bisbilhotar” fique fora do âmbito constitucional. A diferença entre monitorar e bisbilhotar não ficou esclarecida pelo ministro, apesar das perguntas do entrevistador.
Outro desdobramento refere-se à reação à resolução do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores, no qual o partido realizou auto-crítica e afirmou que os governos de Lula e Dilma foram descuidados “com a necessidade de reformar o Estado”, o que demandaria, entre outros aspectos, “modificar os currículos das academias militares; promover oficiais com compromisso democrático e nacionalista; fortalecer a ala mais avançada do Itamaraty”. De acordo com Eliane Cantanhêde, em artigo publicado no Estado de S. Paulo, o documento irritou Villas Bôas, o qual declarou que esse tipo de movimento provocaria um antipetismo no Exército e que o documento possui um tom “bolivariano”.
Para o Estado de S. Paulo, de acordo com editorial publicado em 17 de maio, o documento demonstra inclinações totalitárias do PT. A partir das três linhas dedicadas ao tema pelo documento, o jornal – de forma bastante livre – concluiu que “o modelo almejado [...] é o do populismo militar, cujo exemplo sonhado pelos lulopetistas é o do caudilho venezuelano Hugo Chávez” e que o partido buscava a militarização da sociedade. Contudo, apesar do descontentamento do comandante do exército e do Estado de S. Paulo, a verdade é que a passagem é ambígua e provavelmente significa outras intenções. É mais crível que o PT almejasse uma política militar mais próxima à que ocorreu na Argentina, onde os governos Kirchner buscaram fortalecer o Ministério da Defesa e a condução civil sobre os militares.
No Brasil não houve uma reforma do ensino militar após a redemocratização, o que é negativo, pois impede a necessária autocrítica do passado. A falta de uma revisão – não apenas no campo da educação militar, mas em geral – contribui para que a interpretação do golpe de 64 como uma “revolução” e um ato de salvação nacional contra o comunismo ainda tenha força em parte considerável dos militares e, diga-se de passagem, também da mídia e de parcelas da sociedade. Uma política que permitisse a revisão do passado seria o mínimo a se esperar de uma presidenta que lutou pelo fim da ditadura. Contudo, o governo do Partido dos Trabalhadores foi pouco progressista nesse campo, e esse é o sentido da mea culpa.
O mesmo poderia dizer-se do crescente emprego interno das Forças Armadas, que se acentuou a partir do segundo governo Lula. Essa última questão, inclusive, não é citada no documento sobre conjuntura. A tendência de criminalização dos movimentos sociais, que pode ser fortalecida com a lei antiterrorismo, refere-se a outra dificuldade do governo, não apresentada no documento. Com a presidência de Temer, essas questões já presentes no governo anterior tendem a se acentuar. De todo modo, são problemas que devem ser atribuídos também à administração do Partido dos Trabalhadores, que não conseguiu fortalecer o Ministério da Defesa, realizou uma Comissão da Verdade apagada e sem possibilidade de punição e permitiu que os militares voltassem às ruas para “pacificar” complexos de favela.
Por fim, fazer considerações sobre um processo em curso, durante uma crise profunda como a que o Brasil vive hoje, é um processo difícil e há a necessidade de muita cautela. Com o benefício do tempo, será necessário e possível fazer leituras mais completas e menos apaixonadas sobre o momento que se vive e sobre qual o papel que as Forças Armadas tiveram, enquanto audiência ou protagonistas. De qualquer maneira, a conclusão que fica é que, embora uma intervenção militar não seja previsível no futuro próximo, talvez ainda seja cedo para afirmar que o Brasil superou definitivamente tais episódios. A visão favorável sobre as intervenções militares, infelizmente, ainda está presente em parcelas da sociedade e o Partido dos Trabalhadores se esforçou pouco para aumentar o controle civil sobre as Forças Armadas e fortalecer a ideia de que intervenções militares “nunca mais”.
Livia Milani é doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Nunca mais. By: Dani Vázquez.