A aplicação do Direito Internacional Humanitário nos conflitos atuais: crimes de guerra e proteção a
No dia 03 de outubro de 2015, um ataque aéreo dos EUA atingiu um hospital da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) na cidade de Kunduz, no Afeganistão, e provocou cerca de quarenta mortes, incluindo pacientes e médicos. A cidade é cenário de conflitos entre o grupo Talibã e o governo afegão – apoiado pelos EUA. Recentemente, no dia 29 de abril, o general Joseph Votel, do Comando Central das Forças Armadas dos EUA, declarou que o ataque comandado pelo país foi um incidente, mas não um crime de guerra, visto que não houve a intenção de atacar o hospital e causar mortes. Segundo a versão do governo estadunidense, uma combinação de falhas humanas e técnicas fez com que o hospital fosse confundido com um edifício controlado pelo Talibã.
Os militares estadunidenses envolvidos no ocorrido receberam punições administrativas, como suspensão e retirada de comando e cartas de reprovação, entretanto não receberam acusações criminais, uma vez que foi considerado que eles não sabiam que estavam atacando uma instalação médica. Além disso, o Pentágono anunciou que indenizará as vítimas dos ataques e seus familiares.
Enquanto os EUA defendem a versão de que não houve intencionalidade nos atos, o chefe de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), Zeid Ra'ad al-Hussein, classificou o ataque como trágico, indesculpável e possivelmente até criminoso. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, defendeu que deveria ser realizada uma investigação imparcial do caso. Já a organização MSF, declarou que as investigações militares internas aos EUA não eram suficientes para fazer justiça.
A situação não se restringe somente ao Afeganistão. No dia 26 de outubro de 2015, um hospital do MSF foi atacado no Iêmen pela coalizão liderada pela Arábia Saudita. Entre os dias 7 e 10 de agosto de 2015, nove hospitais sofreram ataques na Síria e no dia 28 de abril mais um hospital foi atingido no país. O governo sírio e a Rússia foram apontados como autores dos ataques – o que eles negaram. Independentemente dos julgamentos que ainda podem ocorrer a fim de punir tais atos, todos esses casos chamam a atenção para os frequentes ataques a civis nos conflitos atuais.
A tentativa de disciplinar o uso da força e colocar limites nos conflitos armados é antiga, porém somente no século XX um conjunto de normas destinadas a regular as práticas dos conflitos armados – incluindo conflitos intraestatais – e a proteger os civis ganhou mais atenção. Essas normas – assinadas e ratificadas por diversos Estados – fazem parte do chamado Direito Internacional Humanitário (DIH) que abrange importantes diplomas normativos como as Convenções de Genebra (de 1864, de 1949 e seus protocolos adicionais de 1977 e 2005). Tais diplomas condenam fortemente práticas como ataques a civis ou infraestruturas civis, utilização de armas químicas, tortura de prisioneiros de guerra, entre outras. O estabelecimento desse conjunto normativo é uma forma de afirmar que, mesmo em tempos de conflitos armados, há condições que precisam ser respeitadas em nome do bem-estar humano.
A base do Direito Internacional Humanitário surgiu com a primeira Convenção de Genebra, em 1864, assinada por doze países europeus. O contexto do nascimento do DIH é majoritariamente dominado por uma concepção tradicional de conflito armado, em que os Estados são os principais atores e os conflitos são travados entre forças armadas regulares com clara distinção entre combatentes e não combatentes. Nessa época, a maior preocupação da Convenção de Genebra era proteger os soldados feridos, garantindo que eles tivessem um tratamento adequado. Com o passar do tempo e o surgimento de outros conflitos – como a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, a Guerra Fria e alguns conflitos intraestatais –, as demandas de proteção durante os conflitos armados foram ampliadas. Dessa forma, o escopo do DIH acompanhou essas modificações. A proteção dos civis foi reforçada, sobretudo, na Convenção de Genebra de 1949, e os conflitos intraestatais ganharam especial atenção no Protocolo Adicional de 1977.
Entretanto, as convenções estabelecidas nem sempre conseguem abarcar toda a complexidade dos conflitos armados. As normas previstas no DIH foram acordadas entre Estados, portanto os atores estatais estabeleceram um compromisso formal de respeitar a legislação que determina os crimes de guerra. Trata-se, pois, de um conjunto de normas estabelecidas por Estados e para Estados. Na prática, o que ocorre é que os conflitos não contam com a participação apenas de atores estatais. A diversidade de atores não-estatais que empregam a força – como grupos terroristas, grupos paramilitares e empresas militares privadas que, muitas vezes, são transnacionais – não é novidade nos conflitos armados e se torna cada vez mais evidente. Diante desse cenário, há uma dificuldade de fazer com que eles também se comprometam com o respeito às normas que regulam os conflitos armados. Muitos grupos não-estatais – como os grupos terroristas – têm como objetivo justamente atacar civis para disseminar um sentimento de medo e terror, o que infringe diretamente o DIH. O desafio dos instrumentos jurídicos é enquadrar esses grupos e seus indivíduos para que respondam criminalmente, assim as violações cometidas seriam julgadas e condenadas em tribunais – sejam tribunais nacionais, ad hoc ou o Tribunal Penal Internacional.
Não é apenas a diversidade de atores que dificulta a proteção dos civis. O caso do ataque ao hospital no Afeganistão demonstra que forças armadas regulares também oferecem riscos à população civil devido, sobretudo, à utilização de tecnologias que distanciam cada vez mais o combatente do campo de batalha. Os ataques aéreos permitem a destruição de alvos militares, contudo constituem um problema quando atingem alvos civis. Independentemente desses ataques serem intencionais ou resultado de uma falha técnica, é fato que eles causam grandes impactos na população civil. Quando falamos de Veículos Aéreos Não Tripulados (os drones) os danos também são preocupantes. Embora exista a possibilidade de se fazer um ataque preciso com os drones, atingindo somente alvos militares e poupando os civis, isso nem sempre é verificado na prática. Essa tecnologia faz com que haja uma desconexão física e emocional do piloto com o campo de batalha. Tal afastamento pode levar a uma banalização da violência que atinge, de forma desproporcional, os civis. Desse modo, diversos atores estatais também são responsáveis por atingir a população civil durante conflitos armados ao usarem tecnologias de forma indiscriminada, sem o devido cuidado com as normas internacionais.
A dificuldade de se aplicar o DIH nos conflitos não significa que o mesmo seja juridicamente irrelevante. Ainda é necessário estabelecer regras e normas gerais para proteger os civis dos conflitos armados e, mais do que isso, julgar os crimes de guerra e punir os responsáveis. No dia 3 de maio, o Conselho de Segurança da ONU adotou a resolução 2286 que condena fortemente ataques a estruturas médicas durante conflitos armados e solicita que as partes beligerantes respeitam a lei internacional e que conduzam investigações imparciais e efetivas para punir aqueles que violam o DIH. O documento é relevante, pois expressa a intenção de reforçar a proteção a civis e confere a devida importância ao tema. Porém, alguns membros plenos do Conselho de Segurança – como EUA e Rússia – não enfrentaram, por enquanto, um julgamento internacional dos atos pelos quais são acusados. Mesmo levando em consideração a hipótese de que as ações não tenham sido intencionais, o fato é que elas são graves e causaram grandes danos aos civis. Diante disso, não é um exagero solicitar que, ao menos, seja aberta uma investigação imparcial de acordo com a legislação internacional.
É preciso problematizar a formulação do DIH, propondo a reflexão sobre algumas questões como: com quem essas normas dialogam, para quem são feitas e a quem se aplicam. Uma oportunidade de abarcar todos esses aspectos é a World Humanitarian Summit que ocorrerá em Istambul nos dias 23 e 24 de maio e reunirá chefes de Estado para discutir planos de ação a fim de reduzir e prevenir o sofrimento humano. Entre os temas abordados, está o respeito às leis internacionais e a proteção a civis, tendo em vista que o desrespeito ao DIH ainda é um fato nos conflitos armados. Esse encontro e a resolução 2286 constituem indicativos de que há uma intenção de reforçar a aplicação do DIH, chamando a atenção das partes beligerantes para as normas que devem ser respeitadas. Tal conjunto de intenções tem potencial para gerar medidas concretas como julgamentos internacionais imparciais e mais rígidos de modo a aplicar, sem distinção, o DIH.
Giovanna Ayres Arantes Paiva é Doutoranda em Relações Internacionais pelo PPG San Tiago Dantas e pesquisadora do GEDES.
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