O Estado Islâmico e o recrutamento de crianças-soldado
Em meio aos recentes atentados reivindicados pelo Estado Islâmico (EI) em Bruxelas, no dia 22 de março, e nas proximidades de Bagdá, no dia 25, algumas questões acerca do funcionamento do grupo ainda permanecem: como o EI é financiado?; como consegue articular tantas ações em diferentes lugares?; de que forma recruta e treina soldados de diferentes nacionalidades e idades? Não pretendemos esgotar esses questionamentos cujas respostas são complexas e demandam análises profundas, mas diante das diversas atuações do EI nos últimos tempos, buscamos refletir sobre uma prática constante do grupo: a utilização de crianças-soldado. De acordo com a definição da Unicef, criança-soldado é qualquer pessoa menor de 18 anos que é recrutada ou usada por uma força armada ou grupo armado em qualquer função, incluindo combatentes, cozinheiros, carregadores, espiões ou com propósitos sexuais. O EI já divulgou vários vídeos em que mostra o treinamento de seus soldados e execuções de seus prisioneiros. Nessas imagens, é possível observar o frequente emprego de crianças-soldado que recebem treinamento militar e doutrinação, executam vítimas e cometem ataques suicidas com bombas. O documentário Children of the Caliphate aborda esse assunto ao mostrar como as crianças são treinadas e comandadas pelo EI.
A utilização de crianças-soldado pelo EI é uma eficiente forma não só de chamar a atenção para as atividades do grupo, mas de obter soldados bem treinados e leais. O EI estabeleceu campos de treinamento onde as crianças recebem educação religiosa extremista e treinamento militar, garantindo assim uma preparação completa e sistemática de crianças. A doutrinação é uma etapa fundamental na formação dessas crianças-soldado, pois é através dela que as crianças são inseridas em uma cultura extremista desde os primeiros anos de vida, isto é, elas crescem já condicionadas a aceitarem os ideais do grupo. Dessa forma, as crianças-soldado recrutadas podem assumir funções típicas de adultos como manusear armas, carregar munição, praticar ataques e ainda atuar como informantes e espiões.
Como forma de obter crianças-soldado, o EI pode recorrer a sequestros para forçar as crianças a cumprir as ordens do grupo ou pode utilizar-se de sua intensa propaganda e capacidade de influência para atrair crianças – e, por vezes, famílias inteiras – através de um discurso “em nome do islamismo”. Desse modo, há um entendimento de que aqueles que morrem pelo EI cumprem o papel de mártires, atuando de forma heroica, pois deram a vida pelos ideais difundidos pelo grupo. Assim, a participação da criança nas atividades do EI é enxergada como uma demonstração de lealdade e obediência.
Nessas circunstâncias, a utilização das crianças-soldado não é apenas um ato de barbárie, mas uma ação pensada e calculada para gerar mais violência e preparar mais uma geração de soldados. Existe, pois, uma racionalidade do EI ao empregar as crianças-soldado. Tal racionalidade consiste em que utilizar as crianças mostra-se eficaz e prático, dada a viabilidade de atrair ou sequestrar crianças. Uma vez doutrinadas e treinadas, as crianças-soldado mostram-se eficientes, visto que são capazes de desempenhar funções de adultos e estão aptas a perpetuar as ações do EI por toda uma geração. Soma-se a isso o fato de que o EI confere ampla publicidade aos seus atos, o que reforça ainda mais o terror e o medo que o grupo pretende disseminar ao divulgar as imagens das crianças com armas. Ao tornar público que essas crianças estão ativamente envolvidas nas atividades militares, o EI vai contra toda uma legislação internacional estabelecida no âmbito da ONU que considera o emprego de crianças-soldado uma violação aos direitos humanos e aos direitos da criança. É justamente esse o objetivo central das ações do EI: espalhar o terror com essas imagens e com suas ações e mostrar sua força como um grupo armado com intensa capacidade de ataque, que consegue reunir um significativo contingente de soldados. Nesse sentido, as crianças constituem o recurso humano ideal para contribuir com um grupo armado amparado por um sistema de recrutamento bem organizado, pronto para doutriná-las como extremistas e prepará-las para as atividades militares a curto e longo prazo.
A utilização de crianças-soldado não é, contudo, exclusividade do EI, tampouco um fator recente nos conflitos armados. O emprego de crianças-sodado pelo grupo é apenas uma lembrança de que crianças continuam desempenhando o papel de soldados em diversos países, associadas a diferentes grupos armados e Forças Armadas nacionais como na Colômbia, Costa do Marfim, Índia, Mianmar e Filipinas. Apesar dos esforços das Nações Unidas para estabelecer uma legislação internacional de proteção da criança (através de documentos como a Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, e a Convenção sobre os Direitos da Crianças, de 1989), a ONU e seus Estados-membros ainda enfrentam o desafio de lidar com atores não-estatais que violam essa legislação. Diante desse cenário, a proteção da criança em conflitos ganha destaque como mais um tema a ser pensado na agenda de Segurança Internacional, tendo em vista que as crianças – e aqueles que as empregam como soldados – desempenham papéis relevantes como atores nos conflitos armados.
Giovanna Ayres Arantes de Paiva é doutoranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.
Imagem: Kara - Collège militaire Eyadéma. By Panoramas.