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“Guerra Fria”: parte do passado ou vocabulário mais que atual?

Em março de 2014, um artigo publicado no The New York Times já trazia à baila novamente a expressão “Guerra Fria” ao afirmar que se o mundo não estivesse revivendo o período, estaria ao menos entrando em uma época de “rivalidade fria”.


A análise de Peter Baker estava então embasada no momento em que, em pleno século XXI, os ares das anteriores rivalidades entre Ocidente e Oriente se reavivavam nas fortes opiniões distintas sobre qual deveria ser o destino da Crimeia. Sendo este seu território vizinho e antiga possessão, quando da época da União Soviética, a Rússia defendeu com veemência o direito à anexação do território que estava sob a jurisdição da Ucrânia. Já os Estados Unidos, com o apoio de países ocidentais com os quais estiveram aliados durante a Guerra Fria original, entre os quais os membros da União Europeia, opuseram-se firmemente à decisão de Moscou e iniciaram movimentos de isolamento do país euroasiático a fim de frear o que consideravam ser sua ambição expansionista.


Segundo o mesmo jornal, nesse momento a Rússia teria posto fim a um período de mais de duas décadas de relações conturbadas, mas construtivas entre as duas potências que dominaram o mundo no século passado.


Apesar de EUA e Rússia não terem efetivamente rompido relações, o estremecimento entre os dois países perdurou com a decisão russa de manter o controle obtido sobre o território da Crimeia e com a contrapartida norte-americana de incentivar a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), originada durante a Guerra Fria e composta por seus aliados desde então, a reforçar o contingente destinado à região com o fim de garantir a segurança de seus membros.


Enquanto as tensões se mantinham elevadas, em novembro do mesmo ano Mikhail Gorbachev, importante líder soviético, voltou a trazer a expressão “Guerra Fria” a seu discurso. Em um evento de comemoração dos 25 anos da queda do Muro de Berlim, um dos mais importantes símbolos desse período de distensão mundial, Gorbachev utilizou a expressão ao referir-se ao contexto contemporâneo presente nos conflitos no Oriente Médio e na Europa.


Retomando o conflito entre Rússia e países do ocidente relativamente ao território da Crimeia, Gorbachev apontou a necessidade de manutenção dos diálogos entre as partes para que o contexto de polarização mundial não voltasse a se consolidar após décadas de sua decadência. Em uma realidade em que as eleições realizadas no território sob disputa estavam sendo postas em xeque pelas forças locais em oposição, bem como pelos apoios contrapostos dados pelos países com projeção internacional que se identificavam com posições distintas, a ideia de uma nova “Guerra Fria” criaria chances de se consolidar em um terreno limitado e eventualmente expandir-se pela renovação de distensões entre os países.


Apesar de não terem alcançado acordos relativos à questão do território vizinho à Rússia, no final de 2015 as duas grandes potências mundiais encontraram no surgimento de um novo fenômeno do terrorismo internacional um meio de estabelecer canais de comunicação que levaram ao surgimento de uma nova concordância militar entre ambos.


No final do ano passado, os EUA e o país euroasiático conseguiram determinar um acordo por meio do qual uniriam forças no combate ao Estado Islâmico, grupo terrorista em atuação principalmente nos territórios da Síria e do Iraque, após a organização ilegal realizar um ataque com mortes massivas na cidade francesa de Paris, em 13 de novembro de 2015.


A atuação conjunta de duas das maiores potências militares e nucleares do mundo, bem vista e, por vezes, com parceria de outros países do ocidente, chegou a gerar tensões em outros países. O fato de a Rússia apoiar governos da região considerados ditatoriais, cuja destituição é defendida em órgãos internacionais, como a ONU, gerou o temor de que sua presença poderia ser utilizada para atacar opositores aos governos locais, apoiados pelo ocidente. Ademais, apesar de contar com a anuência dos EUA e de seus aliados para atuar na região, as comunicações falhas com países vizinhos geraram incidentes diplomáticos, como o representado pela derrubada de um caça russo pela Turquia quando este governo considerou que a aeronave teria invadido seu espaço aéreo.


Em contraposição, mesmo com dificuldades na coordenação entre as partes, a capacidade das duas nações de estabelecerem planos e ações conjuntas serviu como fator amenizador do temor de que uma nova “Guerra Fria” estaria efetivamente se estabelecendo no mundo contemporâneo.


Apesar da falta de oposição dos EUA para as ações da Rússia quando esta iniciou seus ataques contra a nova força terrorista no Oriente Médio, o fato de o país ocidental basear suas ações em uma parceria com o governo sírio do presidente Bashar Al-Assad, ao qual as forças ocidentais possuem fortes objeções, levou a acusações por parte de lideranças norte-americanas de que os ataques russos estivessem focando as forças de oposição ao presidente sírio e não propriamente o grupo terrorista Estado Islâmico, contra o qual deviam atuar.


Enquanto a Rússia seguia defendendo suas atuações como efetivas para desestabilizar e combater o grupo terrorista, países vizinhos da Síria e líderes do ocidente, como EUA e Reino Unido, passaram a condenar a presença da potência euroasiática e a recomendar sua retirada do conflito. Tal tensão reavivou a crise entre Rússia e países do ocidente, reanimando suas oposições e distanciamentos.


No contexto contemporâneo haveria, portanto, duas principais fontes de confronto entre EUA e Rússia: a contraposição entre as duas grandes potências quanto à situação da Crimeia e a atuação russa contra o Estado Islâmico. Ambas situações se configuram em um cenário de tensão ainda mais elevada quando considerados os direcionamentos defendidos pelos EUA para a OTAN nas proximidades do país euroasiático. Estes fatores levaram o primeiro ministro russo, Dimitri Medvedev, na Conferência de Segurança que reuniu cerca de cem chefes de Estado, de Governo e ministros em Munique, em fevereiro de 2016, a alertar quanto à configuração de um cenário cada vez mais parecido ao da Guerra Fria, trazendo novamente o temor dessa distensão extrema que já dividiu o mundo no passado.


Apesar disso, os presidentes das duas potências, concomitantemente à declaração do chanceler russo, fizeram contato para reafirmar a necessidade de uma posição uniforme entre seus países na atuação em território sírio quanto ao acordo de paz que foi esboçado para o país do Oriente Médio. A capacidade de manter um canal de comunicação entre os países e sinalização de possibilidades de ação conjunta seriam indicativos de que o mundo não está efetivamente às portas de uma distensão como a já vivida? Ou seriam apenas parte do caminho conturbado que culminará na reativação da tão proclamada nova “Guerra Fria”?


O fato de a comunidade internacional retomar termos já utilizados para ressaltar antigas tensões quando nuances de sua renovação apontam no horizonte pode ser considerado um demonstrativo de que divisores internacionais não foram efetivamente superados. Entretanto, um olhar mais cuidadoso para questões fundamentais indica que o próprio fato de o contexto não ser igual dificulta o uso da mesma expressão para tratar de cenários distintos.


Durante a Guerra Fria a divisão mundial pautava-se primordialmente na separação das nações segundo diretrizes político-ideológicas opostas que já não se apresentam entre os países que hoje se situam de lados diferentes no tabuleiro internacional. Os confrontos atuais não estão baseados em uma disputa pela liderança ideológica entre dois países que dividem o mundo segundo perspectivas distintas. Mesmo que o poderio militar de Rússia e EUA sigam em níveis elevados similarmente ao que foi construído durante a Guerra Fria, apesar de outras nações ganharem um destaque que não possuíam no período histórico anterior, o fato de a ideologia capitalista ter sido considerada vitoriosa levou a que esse sistema se propagasse entre seus próprios opositores, inclusive a Rússia. Os atuais embates pautam-se em disputas pela influência política e, no caso da Crimeia, domínio territorial entre as duas maiores potências nucleares do globo. Tais disputas, mesmo que oponham adversários históricos, não necessariamente remetem ao período da Guerra Fria, cuja expressão está sendo novamente usada, mas sim à disputa entre dois grupos buscando dominar, fato recorrente na história.

Bárbara Ellynes Zucchi Nobre Silva é mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

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