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Mudança e polarização na América do Sul: um processo não tão pacífico

As forças políticas que ascenderam ao poder na América do Sul durante a primeira década do século XXI, caracterizando o que ficou conhecido como o “giro à esquerda” na região, estão perdendo sua hegemonia, sendo que dois casos importantes são o venezuelano e o argentino. A situação – entre outros aspectos – mostra as inconsistências de parcela das críticas feitas aos governos chavistas e kirchneristas, tendo em vista que as transições ocorrem a partir de disputas e vitórias eleitorais e que, em vistas das transformações ocorridas no início do século, as instituições mantem relativa força. A outra face desse processo é o aumento da polarização em ambos os países e a adoção de lógicas políticas centralizadoras – nas quais os novos líderes são atores centrais.


Na Venezuela, a oposição derrotou o chavismo nas eleições legislativas e garantiu maioria no Congresso, garantindo para si a presidência da Assembleia Nacional. A nova assembleia foi recebida com demontração de apoio pelos países da região e pela OEA. O processo, contudo, é permeado de tensões e disputas por poder simbólico. A Assembleia nomeou três deputados que haviam sido impugnados pela Justiça Nacional, o que gerou uma reação do chavismo, para o qual essa ação deslegitima a oposição. Uma das primeiras medidas da nova assembleia foi retirar as fotos de Hugo Chávez e Simon Bolívar do prédio, o que gerou comoção entre os chavistas, que prometem a instalação de imagens das duas figuras nas ruas de Caracas. Outa ação inicial da coalização Mesa de la Unidad Democrática (MUD) foi sinalizar a vontade de convocar um plebiscito revogatório – apoiando-se na legislação construída pelo chavismo para tentar interromper o governo de Maduro de maneira constitucional. A ironia aqui seria o chavismo perder seu poder a partir das normas criadas no governo de seu antecessor, acusado pelos opositores de anti-democrático. O processo na Venezuela permanece tenso e a única previsão que pode se fazer é que 2016 será um ano de luta por hegemonia e de resistências sociais. No país, o que se apresenta é a incapacidade de diálogo, entre governo e oposição, que se deslocaram a campos extremos.


Na argentina, Maurício Macri, que tomou posse em dezembro, começou a realizar as primeiras mudanças de forma brusca, desconstruindo as ações e políticas do governo anterior. Ao contrário do que se poderia imaginar a partir do discurso midiático hegemônico no Brasil, que apontou a eleição como uma luz para a região, as primeiras ações do presidente foram centralizadoras e autoritárias. Sua posição no que se refere a Ley de Medios é ao menos questionável, tendo em vista que o presidente, sem debate com o Congresso e por meio de decretos, promoveu mudanças importantes em tal legislação. A presidência dissolveu a Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (AFSC), a Autoridade Federal de Tecnologia da Informação e das Comunicações (AFTIC) e criou uma agência única: o Ente Nacional de Telecomunicações (ENACOM). O governo também havia buscado realizar duas nomeações à Corte Suprema de Justiça por decreto e sem consulta ao legislativo, embora, por fim, tenha decidido esperar a anuência do senado para que os nomeados se juramentem. O novo governo também está implementando uma política de racionalização e otimização de gastos, cuja consequência imediata é a diminuição do funcionalismo público e demissões por parte do Estado, principalmente daqueles supostamente ligados ao kirchnerismo.


Não se deve deixar de reconhecer que os governos anteriores, que identificavam a si mesmos como de esquerda, possuíram também momentos de autoritarismo e basearam-se em uma lógica personalista. Contudo, essa lógica personalista é resultado não apenas da ação dos governos mas também da relação entre governantes e governados. É proveniente de uma situação na qual a sociedade em tempos sente-se representada a partir de lideranças fortes e carismáticas e, em outros momentos, personaliza as causas de crises econômicas e institucionais na figura do presidente, como se o mesmo por si só fosse o grande culpado, abstraindo estruturas e relações sociais.


Lívia Peres Milani é mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisadora do GEDES.

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