Parlamento armado
O Estatuto do Desarmamento aprovado em 2003 criou uma série de medidas para disciplinar e regulamentar o uso de armas de fogo no Brasil. Foi um avanço, considerando que as mortes em consequência do uso das armas de fogo no país são alarmantes e os índices de mortalidade comparáveis ao de países que estão em guerra.
De acordo com o relatório produzido pelo Mapa da Violência 2015, o Brasil conta com 15,2 milhões de armas de fogo, sendo 6,8 milhões registradas e 8,5 milhões não registradas. Tamanho arsenal, levou o país a liderar em âmbito mundial as mortes por armas de fogo. Ainda de acordo com o Mapa da Violência, 116 pessoas morrem em média por dia no Brasil como resultado de disparos por armas de fogo, em sua maioria jovens entre 15 e 29 anos.
O debate sobre a posse de armas de fogo no Brasil tem um tom emocional, em que os meios de comunicação, notadamente a televisão, tem papel preponderante na difusão da ideia equivocada de que a arma é um fator de proteção do cidadão contra o marginal armado. Programas de TV com pautas apelativas que exploram casos que geram comoção nacional, são utilizados pelos defensores da disseminação da posse de armas de fogo como combustível para o endurecimento das leis de combate à criminalidade e justificativa para o “rearmamento” da população.
Parte da classe política se apropria do discurso emocional para “legislar” no campo demagógico, como no caso das mudanças propostas pela Câmara dos Deputados no Estatuto do Desarmamento, que retira daquele instrumento legal a capacidade de regulação da posse de armas de fogo.
Uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados propõe a flexibilização do Estatuto do Desarmamento em que se destaca uma proposta esdrúxula: a concessão de porte de armas para deputados e senadores. A medida reflete não apenas o oportunismo demagógico, mas reforça o discurso ideológico de viés conservador que caracteriza a atual legislatura da Câmara dos Deputados. A medida remete o país ao período coronelista e reaviva o espectro do caudilhismo, representado pelo nefasto episódio em que o senador Arnon de Mello, pai do atual senador Fernando Collor, alvejou e matou com um disparo de arma de fogo outro parlamentar em sessão do Senado Federal na década de 1960. No mesmo período, o deputado federal Tenório Cavalcanti, sem sua “Lurdinha” a tiracolo, reagiu ao discurso do colega Antônio Carlos Magalhães e o ameaçou no plenário com uma arma de fogo.
A ascensão de Eduardo Cunha a presidência da Câmara e sua pauta conservadora, atende a conjunção dos interesses da bancada da “Bala, Boi e Bíblia”, e as alterações no Estatuto do Desarmamento e a posse de armas por parte dos parlamentares, reflete a concepção político-ideológica que defende a liberação do comércio de armas de fogo. Armar os parlamentares tem o caráter simbólico de referendar o discurso demagógico e simplista que encobre os problemas estruturais que são em grande parte responsáveis pelas causas da violência.
José Augusto Zague é mestrando em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) e pesquisador do GEDES.